segunda-feira, 23 de abril de 2007

Apresentação


Inauguro este blog com um imenso prazer, mas antes das apresentações algumas reflexões acerca de minha experiência: Quando criei meu primeiro blog, jamais imaginei que ele teria tantos acessos e que encontraria tantas pessoas realmente interessadas em discutir questões ligadas ao cinema, música, cultura, arte e política em geral. Deste modo, precisei me reorganizar, e vejo isso positivamente, para poder cada vez mais publicar e compartilhar idéias. Assim, vem ao mundo virtual, o Cinestesis, cuja principal tarefa será a de continuar discutindo, com sinceridade, todas as questões das quais já tratei anteriormente e muitas outras. O nome, Cinestesis, tem significação na intenção de abarcar não só um tema, ou sentido, mas vários e quem sabe, fundir todos entre si, interligando-os. Também, chamar a atenção ao movimento acelerado e contínuo, caótico, de nossa época e uma reflexão acerca da mesma.

Outro acontecimento dos mais felizes é a parceria com as amigas Aline e Ana, meninas de escrita sensível, cada uma com um gosto vigoroso e diferentemente singulares. Tenho certeza que poderemos fazer muitas coisas juntos.

Ocupando o centro de nossas atenções tentaremos tratar do cinema, sobretudo, de um cinema mais intelectual e diferenciado, sem pretensões e sem pedantismo. Mas sem perder de vista que o cinema, antes de tudo, trata sobre o mundo, e melhor ainda quando trata do mundo de forma poética.

Um dos maiores desafios deste novo projeto será o de manter a espontaniedade, sem formalidades vernaculares castrantes, e também, por outro lado, sem superficialidade, sem preguiça e coragem intelectuais, esta última muito importante para o enfrentamento dos novos sensos comuns que dominam nosso cotidiano.

A partir de agora iremos publicar ensaios, poemas, reflexões, contos, e trabalhos acadêmicos de pessoas que se interessem por cinema, por cultura, enfim, por discussões acirradas, importantes e interessantes. Assim como a tradução de artigos inéditos em língua portuguesa. Cabe lembrar que nossas traduções não tem a pretensão de se afirmarem como traduções profissionais e definitivas de qualquer material e nem que comportem o sentido último do que o autor em questão quis dizer, trata-se mais de humilde esforço de trazer um pouco do gigantesco montante de material intelectual não traduzido para nosso belo e tão menosprezado idioma. Os links para os textos originais, assim como os próprios serão disponibilizados no blog para quem dominar o idioma de origem.

Era isto que queria dizer....Espero que gostem do blog, que possam aprender com ele e que também venham a compartilhar do que já sabem.

A princípio, vou repostar os textos antigos; para muito breve, pretendo fazer um texto sobre o filme, O Retorno, de Andrey Zvyagintsev, ainda, existe também a intenção de postar artigos do Studies in Russian and Soviet Cinema 1e de outros periódicos sobre cinema. No futuro, estarei disponibilizando também, observações de minha pesquisa sobre as tumultuadas relações entre Andrey Tarkovsky e o regime socialista da URSS.

Já que estão feitas as apresentações, vamos ao trabalho.



Dannyeu

Tarkovsky fala sobre roteiros.


Bem, todos que me conhecem sabem da profunda admiração que tenho por este cineasta, deste modo, resolvi colocar algumas coisas sobre ele aqui. Enquanto não escrevo nada a respeito, traduzirei algumas coisas que encontrar em inglês e colocarei aqui material inédito em português. Bem, já falei demais, ae vai uma pequena lição de cinema.

Escrever roteiros e dirigir filmes.
(Notas de aulas ministradas por Andrei Tarkovski no VGIK).

“Eu não posso imaginar realizar um filme baseado em um roteiro que eu não escrevi. Um diretor que faça uma película baseada inteiramente em um roteiro que outra pessoa escreveu transforma-se necessariamente em um ilustrador [...]”.

“Eu tentarei explicar mais detalhadamente o que eu entendo por roteiro e pelo termo “roteirista”. Dizem haver “roteiristas profissionais”, mas em minha opinião, não há realmente tal coisa. Estas pessoas devem ser escritores com boa compreensão de cinema ou devem transformarem-se em diretores eles mesmos (mostrando a habilidade de organizar o seu material literário). Porque, como eu tenho mencionado, não há nenhum gênero literário chamado “roteiro”.

“Nós nos deparamos então com um dilema. Vejamos, um diretor, ao preparar um roteiro,

decide-se escrever no papel somente a seqüência dos eventos e dos episódios como imaginou, como bocados concretos a serem passados para a película. Feito este exame, percebemos porque um trabalho da literatura em roteiro seria disjuntado, inacessível, e totalmente incompreensível, não somente a um leitor ocasional, mas a qualquer um envolvido em um trabalho adicional na película”.

“Se com sua mão o roteirista escolher expressar sua idéia original em um formato literário como um escritor, seu trabalho já não é um roteiro. Transforma-se em um trabalho leterário, como por exemplo, alguma história que extrapole setenta páginas. Se o roteirista estiver preparando também um quadro, pode também anda ir até a câmera e filmar na película ele mesmo, porque ninguém exceto ele tem a visão do trabalho e nenhum diretor faria um trabalho melhor do que ele [...]”.


“Dado assim, um roteiro muito bom e “cinemático”, um diretor atribuído a ele não teria nada a fazer. E se um roteiro for apresentado no formato de um trabalho literário, o diretor será forçado a começar tudo novamente”.


“Sempre que um diretor começa a trabalhar em um roteiro, este começa invariavelmente a mudar, não importa quão profundo ou detalhado o roteiro seja. O diretor nunca produzirá uma película que seja uma tradução exata, literal, um espelho do roteiro. Ocorrerá sempre determinadas deformações. Isso é porque a cooperação entre um diretor e um roteirista gira, em regra geral, em uma batalha e em uma busca para acordos. Não é impossível fazer películas boas desta maneira, mesmo se durante o trabalho preparatório as idéias originais virem a baixo, a nova configuração que o diretor e o roteirista conceberem basearam-se nas “ruínas das velhas”.


“Não obstante, a variante mais natural em fazer da película seria quando as idéias não têm que vir a baixo e se deformar, mas, preferivelmente, se tornarem orgânicas como no caso onde o diretor escreve o roteiro ele mesmo, ou em uma outra variante - o autor do roteiro decidir dirigir o filme ele mesmo [...]”.


“Em resumo, eu penso que o único roteirista bom para um diretor é um bom escritor.”



Fonte: http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/index.html





Ao som de Wayne Shorter , Night Dreamer.

Tonino Guerra


Bem, falando mais sobre cinema, aqui vai um texto sucinto e interessante sobre Tonino Guerra. Ae alguém pode me perguntar, quem é esse cara?
Tonino Guerra, roteirista italiano, já trabalhou com três, entre muitos, grandes cineastas, como por exemplo, Tarkovski (Nostalghia), Michelangelo Antonioni (Blow Up), e em muitos filmes de Fellini, (Amacord e E La Nave Va). Desse modo, tenho certeza que o texto que aqui coloco servirá para apresentá-lo a vocês. No final, segue um trecho de ums dos filmes cujo roteiro fora cooperação entre Tarkovsky e Tonino Guerra.


"Tonino Guerra desvenda mistérios do cinema",
copyright Folha de S. Paulo, 04/10/04


"Tanto é consenso para uns que o cinema é pura diversão quanto para outros que a expressão em imagens e sons constitui uma forma específica de arte. Para estes, a querela que se estende desde meados do século passado permanece centrada na questão do artista: afinal, quem é o autor desse tipo de obra, eminentemente coletiva em sua feitura?

No documentário ‘Um Encontro com Tonino Guerra’, a discussão retorna à tona e dela o espectador consegue sair pelo menos com um ponto de vista sólido em mãos, guiado pela posição firme de um dos mais importantes roteiristas do cinema moderno.

Poeta e romancista na origem, Tonino Guerra, 84, transferiu– se com armas e bagagem para o cinema em meados dos anos 50. A partir dali, de suas mãos saíram palavras e diálogos que seriam concretizados em imagens por integrantes do primeiro time do cinema italiano (àquela altura, baluarte da modernidade cinematográfica). Antonioni (desde ‘A Aventura’), Fellini (a partir de ‘Amarcord’), o De Sica tardio, Francesco Rosi e os Taviani foram alguns dos criadores para os quais Guerra emprestou seu humanismo clássico, sua poesia nua de sentimentalismos e, mais que tudo, sua visão pessimista da modernidade.

Como se não bastasse, a esse time depois ainda se agregariam o russo Andrei Tarkovski e o grego Theo Angelopoulos, dois mestres à sua maneira.

Sem falsa modéstia, Guerra responde à questão da autoria sem ceder à tentação da vaidade estimulada pelo entrevistador. Assume que é, sim, grande, mas lembra que o diretor é, sim, o autor. Porque ao tomar nas mãos o poder da palavra e das situações escritas num roteiro é do cineasta, em última instância, que emana o concerto de tudo em uma visão, a transformação de uma idéia em expressão. Ou seja: em cinema."



Fonte: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=297ASP012


Trecho do Filme:





Indicações:


"Nostalghia"
Andrei Tarkovsky

Gortchakov é um poeta russo que tem por objetivo pesquisar sobre a vida de um compositor russo que viveu na Itália no século XVIII. Encontra Domenico, considerado por muitos um louco, devido ao fato de ter aprisionado sua própria família por sete anos para protege-los do fim do mundo. O Encontro entre estes dois homens, que mal falam o mesmo idioma, tem um desfecho trágico cujo sentido é uma profunda reflexão sobre nossa contemporaneidade.


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"Abandoned Places"
Tonino Guerra.

Sem obras traduzidas no Brasil, - apenas " O Livro das Igrejas Abandonadas", tradução portuguesa da Assírio & Alvim, e esgotado - aqui vai uma indicação de um trabalho de Tonino Guerra em conjunto com Adria Bernard. Parte da coleção Essential Poets Series 74.





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Elementais do Fogo



O fogo é algo que me fascina profundamente, não é a toa que a descoberta, pelo homem, de como fazê-lo foi uma revolução na história humana e possibilitou todo um desenvolvimento das forças produtivas. É um marco definitivo na relação homem-natureza. Porém, hoje, num mundo que cada vez mais se desencanta e se racionaliza, até mesmo este elemento essencial (ao lado da água, do ar e da terra) perdeu um caráter simbólico, digamos, mais mí(s)tico.

Os gregos, por exemplo, considerava o fogo como algo que pertenceria exclusivamente aos deuses, Prometeu, quando tentou traze-lo aos homens foi duramente castigado, sendo condenado ao acorrentamento no alto do monte Cáucaso e a ter seu fígado dilacerado eternamente por uma águia. Na mitologia judaico-cristã o fogo é considerado um elemento de expiação, de purificação... o inferno cristão é constantemente consumido em chamas infernais e talvez seja este um dos motivos de a fogueira ser utilizada como meio, por excelência, de punição à heresia durante a Inquisição. Ainda, em várias culturas não industrializadas, como na Europa medieval, aqueles que eram considerados pagãos executavam rituais, como os de fertilidade, onde o fogo era um elemento ritualístico central, assim como em sociedades indígenas em toda a América. Na Índia os rituais de cremação dos mortos também são um aspecto essencial de sua cultura. Enfim, em qualquer sociedade - tanto no espaço, como no tempo – o fogo ocupa um lugar central, tanto na esfera da produção material como na simbólica.

Pensando nisso tudo, um dia – ou melhor, numa madrugada -, ao acender um cigarro em plena escuridão, me deparei com a beleza da chama de um palito de fósforo. As formas das chamas me arrebataram para um sentimento anímico e pude presenciar a conjuração de pequenos seres etéreos de fogo que pareciam agonizar e dançar no seu pequeno momento de existência. Ae pensei nas salamandras, criaturas do imaginário pagão, que habitavam as chamas. Acho isso tudo interessante, pois sempre penso no processo de racionalização cada vez mais acentuado de nossa época e de como a beleza e a imaginação estão em crise. Particularmente, eu não gosto muito disso.

Foi pensando nestas coisas que eu fiz essa pequena brincadeira em vídeo, um pequeno exercício, mas que, embora tenha alguns problemas técnicos, me agradou bastante. Vejam as salamandras.





Dannyeu.


Andrei Tarkovsky fala sobre Solaris, Stanislaw Lem, Cannes e Fellini

Por quê, em um filme que poderia ser categorizado como ficção científica, você esta mais concentrado no drama de consciência do herói do que com a situação dramática na estação espacial?[1]

Quando eu li a novela de Lem
[2], o que me tocou, sobretudo, eram os problemas morais evidentes no relacionamento entre Kelvin e sua consciência, como manifestado na forma de Hari. De fato, se eu compreendi, e admiro profundamente, a segunda metade da novela - a tecnologia, a atmosfera da estação espacial, as perguntas científicas - era inteiramente por causa dessa situação, que me parece ser fundamental ao trabalho. Os problemas internos, escondidos, humanos, problemas morais, fundem-se sempre distantes, mais do que todas as perguntas da tecnologia; e em toda a tecnologia do caso, e como se torna, relaciona-se invariavelmente às questões morais, no final, estes problemas me interessam mais. Minhas fontes principais são sempre o estado real da alma humana e os conflitos que são expressos em problemas espirituais. E assim, eu dei mais atenção a esse lado das coisas em meu filme, mesmo que inconscientemente. Fazia parte do processo orgânico da seleção. Eu não apaguei o resto, mas tornou-se, de algum modo, mais apagado do que as coisas que me interessaram mais.


Qual a idéia central em seu filme?

O central são os problemas interiores, o qual me preocupei e que preponderou a produção inteira de uma maneira muito específica: a saber, o fato que, no curso da humanidade, do seu desenvolvimento, esta, numa mão, está lutando
constantemente entre a entropia espiritual, moral e a dissipação de princípios éticos, e na outra - a aspiração para um ideal moral. O esforço interno e infinito do homem, que quer se ver livrado de toda a restrição moral, mas procura ao mesmo tempo um significado para seu próprio movimento, na forma de um ideal, que é a dicotomia que produz constantemente o conflito interno intenso na vida do indivíduo e da sociedade. Parece-me que o conflito, e a busca fértil e urgente por um ideal espiritual, continuarão até que a humanidade se liberte suficientemente para se dedicar somente ao espiritual. Assim que isso acontecer, um estágio novo começará no desenvolvimento da alma humana, quando o homem será dirigido em seu ser interno por uma intensa e profunda paixão ilimitada, como dirigiu seus esforços até agora na sua busca para a liberdade. E a novela de Lem, em minha própria compreensão, expressa precisamente a inabilidade do homem se concentrar em seu interior, e os pontos de conflito entre a vida espiritual do homem e a aquisição objetiva do conhecimento. É um conflito que nunca da ao homem toda a paz, até que consiga a liberdade externa completa. Nós pudemos chamar esta liberdade social, a liberdade do indivíduo social que não é necessariamente o pão, o alimento, um telhado, ou suas crianças futuras. A humanidade não se move para a frente sincronicamente. Ela para e começa, vai afora em sentidos diferentes. E somente quando as descobertas científicas ocorrem no curso do desenvolvimento tecnológico há um pulo correspondente no desenvolvimento moral do homem. Há uma coesão extraordinária entre os dois. Aquele era o problema que me exercitou toda a hora onde eu trabalhava no filme. Em termos simples, a história do relacionamento de Hari com Kelvin é a história do relacionamento entre o homem e o sua própria consciência. É sobre o interesse do homem por seu próprio espírito, quando não tem nenhuma possibilidade de fazer qualquer coisa sobre ele, quando está perdido na exploração e no desenvolvimento da tecnologia.


E qual é o resultado do conflito entre Kelvin e sua consciência?

Em Kelvin está simbolizado o “perdedor”, porque tenta reviver sua vida sem repetir o erro que fêz na terra. Tenta reavivar a mesma situação, porque tem uma consciência pesada, porque sente culpado de um crime, e tenta mudar interiormente em relação à Hari. Mas não se esforça. Seu relacionamento termina como aconteceu na terra, a segunda Hari também comete o suicídio. Porém, se Kelvin pudesse reviver diferentemente este estágio de sua vida, não seria culpado na primeira vez. E realiza a razão para que sua inabilidade se efetive nesta segunda vida com Hari. Realiza o que não é possível. Se fosse, então seria possível pressionar a tecla deste microfone que está gravando nossa conversação, replay a fita adesiva, limpa fora o todo o que foi gravado, e o começo novamente como se nada tivesse ocorrido. E então os conceitos, assim como a vida espiritual, a consciência, e a moralidade, não teriam nenhum significado.

Isso tudo não da um significado de pessimismo ao final do filme?

A película termina com o que é o mais precioso para uma pessoa, e ao mesmo tempo a coisa a mais simples de tudo, e o mais disponível a todos: relacionamentos humanos ordinários, que são o ponto inicial da viagem infinita do homem. Apesar de tudo, essa viagem começou para preservar intacta, protegendo os sentimentos que cada pessoa experimenta: o amor de sua própria terra, amor daqueles perto de você, daqueles que o trouxeram ao mundo, amor de seu passado, do que sempre foi, e é ainda caro a você. O fato que o oceano trouxe para fora de suas profundidades a coisa verdadeira, e que era a mais importante para ele - seu sonho do retorno à terra - que é, a idéia do contato. Contatar no sentido de “humano,” no sentido de “fazer bem.” Para mim, o final é o retorno de Kelvin ao berço, a sua origem, que não pode nunca ser esquecida. E é mais importante porque tinha viajado assim, distante, ao longo da estrada do progresso tecnológico, no processo de adquirir o conhecimento.


Você acha que Lem ficou satisfeito com seu filme?

Eu não quis causar grandes expectativas a Lem sobre a película. É uma pessoa cuja a opinião eu tenho muito respeito, eu admiro seu talento e seu intelecto. Eu sou muito afeiçoado ao filme, e extremamente grato a Lem para permitir que eu o faça. Porém, a respeito do que Lem acha sobre o filme, eu não penso que se ofenderá ou se irritará pela película, ou achará que foi mal feita, ou com falta de sinceridade, ou com falta de profissionalismo. Até agora, eu não sinto que o decepcionei. Eu estou certo que gostará de Hari.


Você exibiu sua película em Cannes. O que você achou dos outros filmes que foram mostrados lá?[3]

Eu estou pasmo com o baixo padrão. Eu não compreendo. Por um lado, eu achei tudo altamente profissional, por outro lado, tudo era totalmente comercial. Por exemplo, trataram de um assunto que era limitado para ser do interesse de todos: o problema do movimento do classe operária, ou o relacionamento entre a classe operária e outros segmentos da população. E toda ela foi feita com tal olho às audiências, com tal desejo de agradar… tive realmente a impressão que todas as películas tinham sido editadas por uma e para a mesma pessoa. Mas na película, de tudo, a coisa a mais importante é estar ciente do ritmo interno. Assim, o que poderia ser individual teve o lugar comum tornado vulgar. É extraordinário. Mesmo a película de Fellini sobre Roma, a película a mais interessante de todas, mostrou-se fora do festival apropriado. É uma regra do jogo, dar-se combinado com a audiência, o ritmo editorial é assim, que com lisura faz-se sentir ofendido em nome de Fellini. Eu recordo planos seus, onde os tiros, o comprimento dos tiros, e seu ritmo, foram amarrados ao estado interno do caráter e do autor. Mas este retrato foi feito com um olho para o que está agradando à audiência. Eu acho aquilo repugnante. De qualquer modo, a película não nos diz nada de novo sobre Fellini ou sobre a sua vida.



Que você achou sobre o Macbeth de Polanski?[4]

Eu não gostei. É muito raso, muito superficial. Ignora completamente o problema moral da consciência do homem que está pagando pelo mal que cometeu. Eu sou desconcertado com o fato de que qualquer um pode falar sobre Shakespeare e contornar completamente
as questões espirituais envolvidas. É uma falha crucial na obra de Polanski. Suas intenções sérias se mostram somente em seu impulso em ser naturalista. A película é assim tão detalhada que cessa de ser realísta. O alvo do diretor torna-se óbvio, e com isto, temos meramente meios de conseguir um efeito. E uma vez que as audiências podem ler aquilo assim, claramente, a obra cessa de ser única, como uma moda, um filme que se transforma apenas em um alvo patentemente óbvio.



Quais são os seus planos agora?

Não é fácil falar sobre eles, para mim sempre muito amedrontador de fazer isto. Se você falar demasiado então nada acontece. Mas, de qualquer modo, eu tenho um roteiro todo pronto. Eu quero começar a rodar no outono. Será uma película autobiográfica, sobre minha infância
[5]. Olhará os mesmos eventos de dois lados: o ponto de vista da geração mais velha e minhas próprias percepções. Eu penso de que o uso daquele paralelo e que poderia criar uma maneira interessante de ver coisas, um ângulo interessante, e a interseção emprestará uma coloração curiosa aos eventos que são familiares a todos no curso de suas vidas. Eu estou muito excitado em relação ao roteiro. Eu estou muito ansioso para fazer a película, porque eu estou receoso que se qualquer coisa der errado, eu nunca retornarei ao mesmo tema. Eu pensei muito sobre o roteiro, e eu tenho tantas coisas para produção. E eu tenho a convicção de que se minhas idéias estiverem corretas, o filme ganhará vida própria.



[1] O seguinte é um transcrição de uma entrevista com Tarkovsky, conduzido por Zbigniew Podgórzec em 1973. Sr. Podgórzec entrevistou também Tarkovsky em 1972 - os fragmentos dessa entrevista são encontrados entre os excertos nesta página. Referência: A primeira tradução para o inglês desta entrevista apareceu em um apêndice in Time With Time: The Diaries 1970-1986, Seagull Books Private Limited, Calcutta, 1991, pp. 362-366. ISBN 817046083-2. Tradução para o inglês Kitty Hunter-Blair. Constitui abaixo os excertos da parte original. A tradução heróica do Inglês para o Português foi minha, porém faço questão de frisar que meu Inglês não é dos melhores. A entrevista no original pode ser encontrada no link, http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/
[2] Escritor polonês, nasceu em Lwów em 12 de setembro de 1921, falecendo recentemente em Cracóvia, 27 de Março de 2006. Para mais informações, consultar http://pt.wikipedia.org/wiki/Stanis%C5%82aw_Lem
[3] Faz-se importante citar que o grande vencedor do prêmio de melhor filme desse festival (1972), Palma de Ouro, foi “A Classe Operária vai ao Paraíso”, de Elio Petri. Porém, o filme Solaris ganhou o Prêmio Especial do Júri, Federico Fellini, por sua vez, conquistou o Grande Prêmio da Comissão Técnica.
[4] Quanto a Polanski, não descobri a relevância do filme colocado em questão por Tarkovski em relação ao festival desse ano.
[5] O filme se concretizaria e se tornaria extremamente polêmico, tudo indica que Tarkovski estaria falando do filme, O Espelho.




Segue um importante trecho do filme, com legendas em inglês.





Algumas indicações:


"Esculpir o Tempo"
Andrei Tarkovsky

O livro funde diário, cartas, reflexões filosóficas e as concepções de Tarkovsky sobre a arte, sobretudo o cinema. Sem dúvida, um trabalho fundamental para a compreensão das principais influências do autor e com importantes referências sobre as inspirações do mesmo, porém, vai além de ser um simples livro sobre cinema ou um texto autobiográfico, pois apresenta considerações importantes não só sobre o cinema, mas a sobre a própria experiência da União Soviética.


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"Solaris"
Stanislaw Lem

A obra literária que inspirou o filme e que desbrava a inquietação do homem entre o infinito insondável do vácuo e a experiência humana. Uma obra de "ficção científica" influenciada por uma das mais fortes tradições humanistas, a de pensadores como Tolstoy e Dostoievski.




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Daniel


Reflexões de um roteirista

O presente texto é a transcrição parcial de um seminário ministrado por Jean-Claude Carrière no Ateliers des Arts em março de 1983. Traduzido por Ignácio Dotto Neto e foi extraído do site
http://www.roteirodecinema.com.br


O que é um roteiro?


Um texto em mutação


Um roteiro pode ser comparado a uma ferramenta de alquimista. Uma passagem. Uma transmutação. Todos aqueles que, sobre um tablado, em um estúdio, participam desta transformação muito lenta, muito difícil, tão árdua quanto a busca da pedra filosofal - seja ele o último estagiário que traz os sanduíches ou o ‘mestre da obra’ - são os operários deste ato de feitiçaria. Eles trabalham neste antro, neste cadinho mágico que é o cinema, que irá transformar um ‘objeto’ escrito em ‘coisa’ filmada. O roteiro é principalmente isso, o instrumento de uma passagem, uma etapa crisálida. Se tivesse que definir o roteiro, é o que eu poderia dizer... Um texto portador de um outro estado... Palavras geradoras de imagens e sons.

Um texto livre

Nunca digo ‘Uma das regras fundamentais do roteiro é...’. Acho que não existe nenhuma regra neste campo. Os roteiristas podem imaginar tudo, fazer tudo. A única certeza, a única exigência é que aquilo tem que funcionar... e aí nenhum pressuposto divino ou humano pode ditar essa ou aquela forma. Dito isto, existem princípios que se aprendem e nos quais se acredita porque sabemos que quando não os aplicamos o filme não fica tão bom quanto poderia. Me parece essencial e evidente ‘nunca anunciar o que será visto, nunca contar o que se viu’. Isso parece simples e pueril, um novo ovo de Colombo. E, no entanto, quando vamos ao cinema, os personagens comentam a ação, discorrem sobre a imagem quando é completamente inútil ou, pior ainda, anunciam e expõem o que vai acontecer, aquilo que nos será mostrado. É uma perda de tempo considerável, uma redundância. Evitá-la é difícil e dá muito trabalho, mas é uma regra que me imponho e cada roteirista cria sua própria exigência. Isso força a não ceder à facilidade da narrativa e a buscar e imaginar soluções narrativas que, de outro modo, não teriam sido confrontadas.

Um texto que não é uma narrativa

Todos nós fomos educados na tradição da tragédia clássica que se baseia na narrativa. Isto faz parte de nossos ‘genes’ e é difícil desprender-se deles, na verdade impossível como mudar de raça. No período da tragédia clássica, se narrava, não se mostrava. Fazia-se assim por razões de ‘bom gosto’, de conveniência. Agora, quando as contingências não são mais as mesmas, ainda nos resta alguma coisa que não conseguimos esquecer. Não estou afirmando que não há necessidade de narrativa no cinema. Algumas vezes é até interessante narrar alguma coisa que não vimos. Em A via Láctea, que escrevi com Buñuel, um personagem conta um milagre e para mim é uma das melhores cenas do filme... Buñuel e eu nunca havíamos experimentado isso e um dia dissemos ‘E se escrevêssemos uma narrativa cinematográfica?’... Imaginamos que alguém se senta perto de uma lareira, rodeado por uma platéia e começa a contar... E que o que ele diz, o que sugere não é nem uma narração romanesca nem um texto teatral, mas pertence ao mundo cinematográfico... O cinema não é literatura. Isto me parece muito importante.
A literatura é talvez o maior perigo que ameaça o roteiro, o cinema: é preciso que desconfiemos das palavras muito bonitas que são utilizadas, das frases muito bem construídas: elas não têm equivalência na tela; elas se referem a um outro registro, o do estilo escrito e não à linguagem visual. Somos tentados sempre colocar no papel ‘que reina em uma peça uma atmosfera lúgubre’ ou que ‘os personagens têm um ar de contentamento’. O que isso quer dizer? É preciso que um roteirista seja extremamente honesto com o filme que vai nascer de suas palavras. Ele não pode escrever algo que não vai acontecer, que não tem relação com o que o expectador irá ver.

Se podemos escrever que ‘Georges Swamm acorda de mau humor’, é preciso saber primeiro o que, sem essa indicação, não é possível, ou menos difícil. Em seguida, isso pode ser indicado, mas é preciso que este estado de espírito seja traduzido na tela, o que não é simples. Mas escrever ‘que ele acorda pensando em Odette’ pertence apenas à literatura, que vem naturalmente sob a pena quando é preciso afastar-se dela. A experiência me ensinou outras coisas no que diz respeito à escrita técnica de um roteiro.

Um texto ligado ao tempo

Não é preciso narrar longamente uma ação breve e brevemente uma ação longa. O tempo de leitura de um roteiro deve corresponder quase ao tempo de projeção do filme. As durações devem ser iguais. Ler um roteiro em voz alta - ação e diálogos - por alguns minutos não deve tomar mais ou menos tempo que o que se passa para ver o filme. Não é preciso descrever em vinte e cinco linhas a queda de alguém que cai de uma janela nem despachar em uma frase a atitude de um personagem que, debruçada nessa mesma janela, está sonhadora e triste, espera por alguém ou olha a paisagem durante muito tempo. Nesse caso, convém definir com precisão o que se vê e fazer sentir de uma maneira indireta o tempo que passa.

Em suma, é preciso que a escrita seja equivalente e paralela ao tempo cinematográfico.

Um texto próximo à imagem

Sou roteirista há 20 anos e tenho constatado – devido aos fatos - uma evolução na escrita de roteiro. Antes ela era muito mais técnica, precisa. Era necessário dar muitas indicações de cenário, de lentes, até mesmo de diafragma. Hoje, tudo isso desapareceu em grande parte e o roteirista não está mais ligado desse modo a uma escrita que inclui uma découpage técnica, pois a filmagem se faz mais comumente em cenários naturais aos quais devemos nos adaptar no próprio momento. Mas permanece na escrita de um roteiro uma certa maneira de indicar o que eu chamo uma découpage inconsciente ou subterrânea. O simples fato de iniciar novo parágrafo evidencia isso. O conteúdo das frases também.

Se digo ‘uns trinta estudantes estão reunidos em uma sala com poltronas negras da escola de cinema’, isso implica, sem necessidade de maiores especificações, uma panorâmica. Se escrevo ‘na primeira fila, uma estudante morena com cabelos curtos toma notas com uma caneta azul’, isso indica automaticamente um close. Iniciar um novo parágrafo ritma inconscientemente a leitura e dá indicações preciosas. À primeira vista, não nos damos conta que existe uma découpage, mas existe, e a leitura não é obstruída e sobrecarregada de indicações técnicas. Se leio ‘em uma pequena mesa, dois homens estão sentados. Um fala e tem uma barba grisalha, e o outro, os braços cruzados e está ouvindo’, eu vejo um plano médio. Se leio ‘sua mão leva um copo d’água até seus lábios’, eu sei que se trata de um close-up.

Se queremos indicar um travelling unindo esses dois planos - plano médio e close-up - basta escrever essas duas ações sem interrupção, quer dizer, ‘dois homens estão sentados em uma mesa. Um fala, o outro escuta. A mão do homem barbudo pega um copo e aproxima de seus lábios’. Inconscientemente, fiz um zoom e antes um travelling, porque não abri novo parágrafo.
Se, em compensação, eu abro um novo parágrafo, por esse simples fato de escrita, indico um corte, uma mudança de plano. Quando se trabalha com um diretor, quando imaginamos em dois uma cena, acontece um outro fenômeno. Acontece uma espécie de comunicação visual que se estabelece, que mantém a découpage inconsciente induzida no que acabamos de perceber - iniciar novo parágrafo ou não, escrever essa ou aquela frase.

Misteriosamente, os dois colegas vêem a cena com as mesmas disposições. Com Buñuel, isso acontecia constantemente. Se eu escrevia, por exemplo, ‘Alguns expectadores estão na sala. Pela porta enfeitada com papel de parede azul acaba de entrar um homem moreno, vestido com um pulôver, que vai se sentar’. Isso queria dizer - minha mudança de parágrafo - que eu tinha me colocado na porta para ver a entrada desse personagem. Quando começávamos a trabalhar essa cena e eu desenhava a tomada, se eu perguntava ‘Luis, de que lado do cenário é a porta?’ Ele me respondia, por exemplo, ‘à sua esquerda’ e isso sempre correspondia ao que eu havia imaginado. Isso está relacionado ao gesto que fazemos, às atitudes que tomamos, mas também a uma comunicação quase telepática que se estabelece entre duas pessoas que trabalham há alguns dias ou semanas juntos.

Existe história e história

Existem muitas maneiras de abordar uma história. Podemos classificar as narrativas em gênero ‘histórico’, épico, cômico, sabendo que estes rótulos são sempre inúteis. Podemos também tentar definir uma história segundo o público para o qual nos dirigimos. Eu prefiro me situar em um outro plano. Creio que existem apenas três tipos de histórias.

A história contada por alguém que a conhece para pessoas que também a conhecem. Esse tipo de narrativa possui raízes muito ancestrais e é o mais difundido. É da mesma família do trabalho dos contadores de histórias. Penso sempre naqueles da Amazônia que têm por tarefa contar os eventos míticos que determinaram o nascimento da tribo. O que eles dizem, todos os expectadores já conhecem. Mas o que é importante é a maneira como eles contam, a maneira de introduzir suas personalidades aos acontecimentos. Os mesmos fatos muito precisos assumem uma outra coloração conforme é este ou aquele contador que se encarrega de contar. Danton[1] pertence a este tipo de história. O homem que ele é, o que lhe acontece não é uma revelação. 90% dos expectadores sabem que ele vai se opor a Robespierre e que será guilhotinado. O que vai lhes interessar no filme Danton que coloca em cena um homem cujo destino eles conhecem muito bem? É preciso segurar sua atenção não por meio de peripécias - que já estão enumeradas - mas pela maneira de apresentar a narrativa, o ângulo da tomada e o trabalho do ator.
Existe também a história contada por quem a conhece para aqueles que não a conhecem. Mais de 50% dos filmes que vemos pertencem a essa categoria, é evidente. Se escrevo um roteiro de um filme policial, eu conheço o culpado, conheço o assassino e sei como o desfecho vai acontecer. Os espectadores, pelo menos em princípio, ignoram tudo isso. Hitchcock, que é o mestre desta segunda categoria de narrativa, dizia: ‘não conte o fim’. É o que podemos chamar ‘a história chtt’ ou história ‘dedos sobre os lábios’.

Este gênero de narrativa também possui raízes muito antigas. O teatro, a arte dramática, tem origens sagradas, estão ligados ao religioso. Mas a tragédia grega pertence mais à primeira categoria. Aqui, encontramos o que apareceu com o romance, quer dizer, uma história que foi escrita por alguém que a inventou e é descoberta pelos leitores que a ignoram e penetram nela página após página, acontecimento após acontecimento.

Por último, existe o terceiro tipo de narrativa. Alguém conta uma história que não conhece a pessoas que não a conhecem mais que ele. Isso pode ser resumido em uma única palavra: ‘improvisação’. Aí também as origens remontam à noite dos tempos. O teatro a tem praticado desde os primórdios e, na tela, Godard ou Ferreri trabalham dessa forma e são os cineastas do terceiro tipo. No momento em que Jean-Luc Godard diz "filmando", ele não sabe realmente o que vai se passar. Ele diz ‘é preciso evitar chegar antes de ter partido’ e a primeira questão que ele coloca sempre é ‘o que está acontecendo?’. No momento em que ‘estão rodando’ acontece alguma coisa que não aconteceria durante os ensaios. Existem evento e fenômeno novos. Ele os espera e os utiliza.

Ferreri raramente faz uma tomada duas vezes. O que lhe parece importante é o que ele captou naquele momento preciso. Acontece de ele suprimir se a tomada não ficou boa. Cada vez, bem entendido, ele tem uma idéia do que quer, mas não sabe o que vai ter e se deixa levar pela descoberta.

Para citar um belo exemplo do que a improvisação pode trazer a um espetáculo, é preciso citar Les maîtres fous, de Jean Rouch, que Peter Brook também considera um filme emblemático. Aí, trata-se de um happening, uma palavra decomposta que modifica todo seu sentido: o que acontece em um momento de transe, quando um ator está tão completamente possuído que esquece de si mesmo e se torna aquilo se supõe que está representando? É preciso ver e rever este filme para compreender bem o que a improvisação pode dar como dimensão nova a um espetáculo.

Raoul Ruiz, com quem eu falava um dia da minha maneira de classificar as histórias em três tipos de narrativas, me respondeu sob a forma de provocação e de brincadeira que existe ainda uma quarta ‘uma história contada por pessoas que não a conhecem para pessoas que a conhecem’. Eu pedi que me desse um exemplo e ele me disse ‘Todos os cineastas da América Latina ou do Terceiro Mundo vêm a Paris. Fazem o IDHEC[2], aprendem a fazer cinema à européia e em seguida retornam a seus países. Resolvem contar uma história típica deles, mas fazem em um estilo europeu. O que faz com que coloquem em cena uma história que eles esqueceram, perverteram, traíram, transformaram e a contam para pessoas, para espectadores que a conhecem muito bem, mas que simplesmente não a reconhecem mais’.


O ritmo e o tempo
Uma outra escritura

Se escrevo em um roteiro ‘na manhã seguinte, Charles Swann acorda pensando em Odette’, é uma frase literária que não possui nenhuma equivalência cinematográfica. Cada palavra contém uma impossibilidade: ‘o dia seguinte’: como indicar no cinema que estamos no dia seguinte? ‘De manhã’ é menos simples do que pensamos. ‘Charles Swann’; se não pronunciei esse nome antes, ninguém saberá quem ele é: será simplesmente um homem em sua cama. E ‘pensando em Odette’ não é imaginável. Podemos mostrar um ator que está refletindo, mas não podemos mostrar alguém que está pensando. Se não conseguimos comunicar um pensamento preciso, às vezes tentamos sugerir de modo sutil aquilo que um personagem está pensando. Simplesmente mostrando-o e abstendo-se de falar de suas impressões ou de suas preocupações.
Mas de um modo geral ‘o pensamento é a noite do cinema’...

É preciso lembrar sempre que o público é mais passivo no cinema que no teatro. A imagem na tela se impõe com mais força e realismo que uma cena de teatro. Quando um diretor não se dá conta da faculdade de imaginação de um público de teatro, ele vai inevitavelmente ao fracasso. No cinema, o espectador está na sombra e está disposto a receber imagens. A partir do momento que uma imagem é fotografada, que é a própria definição do fotograma, ela é recebida como verdadeira. É por isso que o fantástico, a violência, o horror possui tanto impacto: acreditamos no que vemos. A tela é portadora de verdade. O cinema nos transforma em São Tomé: vimos, acreditamos. No teatro, ao contrário, permanecemos sempre no teatro. Isso não quer dizer que a emoção sentida seja fraca, mas ela nos atinge de um modo diferente.

A importância do tempo
Fazer perceber o desenrolar do tempo é outra dificuldade. Isso se transforma em um instransponível quebra-cabeça quando é preciso indicar que se passam 15 dias ou três semanas e encontrar um ritmo que permita contar uma história pelo calendário. Por outro lado, devemos estabelecer dentro do roteiro uma espécie de continuidade, de ‘falso ritmo’, e separar o que chamamos ‘o tempo cinematográfico’, tempo que é para mim o problema número um desta escritura. O tempo cinematográfico se diferencia do tempo romanesco e do tempo teatral.

As noites e os dias

Um dia, eu falava de Danton com Wajda. Eu disse a ele ‘me parece, depois de tantos anos de trabalho que uma das coisas mais importantes em um filme é a alternância de noites e dias. Não que seja necessário uma noite para uma noite e um dia para um dia, pois o dia cinematográfico não tem nada a ver com a descrição de tudo o que se passa durante 24 horas. Podemos escrever ‘interior’ do Palácio do Congresso. ‘Dia’ e em seguida ‘interior. Hôtel Arenberg. Dia’. Será um dia cinematográfico, mas a cena do hotel poderá se passar três semanas depois. Dentro de um dia ‘tela’, podemos colocar muitos dias da vida real, misturar o tempo.

Para as noites, é mais difícil. Temos todos na memória certos filmes noir americanos que se passam quase que exclusivamente durante a noite, nos quais uma noite sucede a outra, continuidade que é mais difícil e acrobática de estabelecer que a dos dias. Pois sei, sem poder explicar, que uma noite cinematográfica dificilmente pode conter muitas noites reais. Ao contrário do que é possível com os dias.

Mas o mais importante é a relação, no interior de um mesmo roteiro, da sucessão de noites e dias. Isso dá um ritmo inconsciente que não é percebido, que não é preciso acentuar, mas que funciona com energia. Esse ritmo é essencial: todas nossas atividades, nossa vida, são definidas por ele. Romper com isso condena ao mal-estar, ao fracasso.

Acabo de trabalhar com Daniel Vigne em um filme, Le Retour de Martin Guerre. A ação se passa durante três ou quatro meses. É indispensável estabelecer desde o início o número de noites contidas em um roteiro. Não podemos escrever um roteiro que dura muitos meses somente com duas noites. É melhor que sejam 6 ou 7... sem chegar a abordar as 90 ou 120 que corresponderiam à realidade!

Observei, sem nunca ter tido a teoria, que as passagens do dia e da noite indicam uma mudança muito rápida. Também é bom alterná-los de modo regular - se isso é possível - para que o mesmo intervalo separe as noites umas das outras. Isso ajuda a encontrar uma respiração, um ritmo que parece natural porque está de acordo com o desenrolar do tempo na realidade, com a passagem das estações. Isso, posso dizer, é quase uma receita.

Quando eu falava para Wajda de tudo isso, ele foi logo interrompendo e me disse ‘Eu precisei de 20 anos para descobrir isso’. Esse ritmo é muito importante. Se ele não funciona ou funciona mal, cria uma espécie de caos que pode ser interessante se o dominamos, se o organizamos, se brincamos com ele. Um filme não é um rio que corre com regularidade. Nele podem existir quedas, cascatas, redemoinhos. Mais uma vez não existe qualquer regra, mas é preciso saber que, quaisquer que sejam o estilo e o ritmo de seu filme, esta alternância de dias e noites é fundamental.

Encontrar o ritmo

Todo ritmo é bom. Toda quebra de ritmo é perigosa. Ela pode ser às vezes extraordinária se é bem feita, pois desperta o interesse.

Todo ritmo é bom, seja ele rápido, lento ou moderado. Mas é importante não errar o ritmo. Assistimos comédias devastadas porque o diretor pensava que esse gênero implicava obrigatoriamente o movimento irregular, o acelerado, a rapidez, que se a câmera girasse rápida, seria muito mais engraçado do que se funcionasse em velocidade normal. Laurel e Hardy nos ensinaram exatamente o contrário. Eles são, juntamente com Raoul Walsh, os inventores do cômico lento, do cômico vindo do circo, do cômico em que não se acelera... e embaixo da lona milhões e milhões de pessoas riem há gerações.

A questão do ritmo não está apenas ligada ao assunto, mas ao ator e ao resultado antecipado. Vi Tati, no dia de estréia de As férias de Monsieur Hulot, espantado, na cabine de projeção do cinema Normandie, refazendo a montagem. Chaplin dizia que nunca sabia quanto tempo deveria permanecer em um efeito cômico no fim de uma gag. Buñuel conheceu Chaplin muito bem. Eles se viam muito em uma época que Luis estava passando por dificuldades financeiras. Buñuel inclusive tentou vender algumas gags a ele. Um dia, Chaplin o convidou para uma pré-estréia de Luzes da cidade, filme onde há a famosa cena em que ele engole um apito. Ele tem um soluço e está assoviando. Buñuel, como os outros espectadores, riu muito... no início, porque a gag durava 23 minutos, duração que Chaplin achava perfeita. Buñuel me contou ‘Depois de 3 ou 4 minutos, frente a essa repetição desmesurada, nós nos olhamos, em seguida olhamos nossos relógios e no final da seção, dissemos a ele que era muito interessante, mas que havia aquela cena que não acabava nunca’. Chaplin, que, entretanto, sabia fazer filmes, ficou com um ar muito surpreso. Ele não tinha se dado conta que a duração era inadmissível. Foi preciso toda a insistência de Buñuel e de outros para reduzir a gag a um tempo razoável... normal. Embora a noção de normalidade seja muito elástica uma vez que o que faz um espectador rir durante um certo tempo poderá aborrecer outro rapidamente. Uma platéia é uma mistura.

São necessários tempos mortos?

Quando me colocam essa questão, penso sempre na cena de acampamento em um western... esse tempo de suspensão, da qual algumas vezes sentimos a obscura necessidade que se assemelha àquela da noite. Essa cena não existe apenas neste tipo de cinema. Transposta, a encontramos em todos os filmes. Ela está presente em Claude Saudet quando ele volta com Piccoli e Schneider. Trata-se do momento em que a ação pára e sentimos a necessidade de comentá-la, determinar as coordenadas. Os personagens dormem se possível uns nos braços dos outros e, que um índio malvado ou o marido ciumento esteja escondido atrás de uma moita ou de um outdoor, o que importa é que seja um momento de respiração e não de tensão.

Essa cena de acampamento é um tempo morto? Não creio, pelo menos não no sentido negativo. Ela faz parte da estrutura da narrativa e da necessidade que os espectadores têm de fazer uma pausa. Um tempo morto também não é uma moldura vazia ou uma cena que dura excepcionalmente muito tempo. Neste caso podemos de preferência falar como dizemos no teatro ‘colaboração com o público’. O encenador deve se perguntar às vezes ‘o que é que permite à imaginação de um expectador brincar no mesmo tempo que a minha?’ Losey em Accident faz com que os personagens saiam de cena e nos deixa por um momento em um cenário vazio, seja um interior ou um caminho na zona rural rodeado de árvores. Se formos expectadores atentos e interessados, esta imagem não será vivenciada como nada: ela faz vibrar em nós tudo o que a cena anterior significava, continuamos a contar para nós mesmos a história dos personagens que acabam de sair. Mas esse qualquer coisa que continua em nós, somos nós, o público, que o trazemos, não é Losey. Losey nos ofereceu a ocasião de sonhar naquele momento. A ocasião de reunir nossos sentimentos, a ocasião de imaginar o que continuam a fazer e a dizer os personagens que não estamos mais vendo. Isso é muito, muito bom.

Mas será um tempo morto, esse momento em que bruscamente a ação pára e quando o que passou em um olhar ou um gesto é deixado para a interpretação e emoção de cada expectador?
Não acho.


O conteúdo da imagem

Uma linguagem de olhar e gesto

Fui rever La marche nuptiale, de Eric von Stroheim. É um filme de que gosto muito. Me perguntei como tinha sido escrita no roteiro a cena da sedução a cavalo - ela é bastante conhecida - quando, enquanto uma missa solene está sendo celebrada na catedral, Stroheim, que no filme interpreta um personagem que comanda um esquadrão de cavaleiros austríacos nesta cidade de guarnição, seduz uma jovem que vê passar seu cavalo e seu regimento. Ela está no meio da multidão com seu noivo, um açougueiro muito rude, e seus pais. É uma cena que dura 15 minutos: nem uma palavra é trocada. Não há nada além de olhares, gestos, sorrisos muito discretos.

Como isso foi escrito, narrado, minuciosamente calculado no papel? Tudo acontece no olhar e cada olhar é diferente. Existem os olhares da jovem e ela está com sua cabeça quase na altura do joelho de Stroheim. Ele quer perguntar a ela se ela é casada. Ele está com sua espada na mão, ele a baixa e também os olhos, ele convida seu olhar a fazer o mesmo movimento. Há um contracampo da jovem cujo olhar baixa até a mão de Stroheim, a mão que faz alguns gestos, que a jovem não entende, isso se lê em seus olhos. Então, ele cruza as mãos e em uma outra atitude, um outro movimento, tenta perguntar a ela ‘você é casada?’

É uma cena fantástica, muito erótica. Como traduzir em um roteiro o que não é uma linguagem de diálogo, mas de fisionomia, de atitude? Acho que houve uma découpage muito precisa, quase desenhada. Não podemos deixar ao acaso da montagem as direções do olhar, os olhos da jovem que vão do rosto até a mão. Isso deve estar rigorosamente previsto.

O cassetete de Hitchcock

Hitchcock colocava os problemas do cinema de um modo muito concreto. Ele se perguntava, por
exemplo, e ele achava isso fundamental, se, quando uma pessoa caminha por uma rua na qual depois da esquina alguém a espera com um cassetete, é preciso mostrar ou não o homem com o cassetete. Durante toda a vida ele se colocou esse problema, como Chaplin nunca parou de se perguntar quanto tempo deveria durar a gag do apito.

A maneira como estou falando dessas coisas pode parecer simplificar essa questão, ela não continua menos central. É necessário mostrar os suspenses: filmar o homem que caminha pela rua, pára, compra um jornal, enquanto o outro, constrangido pelos transeuntes, esconde seu cassetete ou jogar com o prodigioso efeito de surpresa de um golpe de cassetete que não era esperado. É entre esses dois pólos, com todas //as nuances que eles implicam, que trabalha o cinema de Hitchcock. Ele e Lubitsch se comportam como romancistas do século XIX, eles são os mestres absolutos de seus personagens.

Em To be or not to be, Lubitsch passa de um personagem a outro, de um cenário a outro em função do que espera da reação do público: isso retoma e prolonga a questão colocada por Hitchcock: em que momento o público deve estar antecipado em relação ao personagem, em que momento ele deve estar atrasado.

Em um filme policial, o detetive possui uma informação que precede a do expectador. Ele sabe de coisas, mas nos oculta até a revelação final. Ele faz um certo número de operações misteriosas, de colocações que nos mostram que ele tem uma idéia. Por outro lado, no exemplo de Hitchcock, se vemos o homem com o cassetete estamos adiantados em relação ao detetive e à narrativa.

O bom lugar do clichê

Hitchcock dizia também, em uma outra esfera, ‘Mais vale partir de um clichê do que terminar em um’. Quando procuramos uma idéia original, que damos tratos à bola para encontrar uma situação que nunca foi contada e a encontramos, começamos por festejar e nos parabenizar por termos inventado um truque extraordinário. Em seguida nos perguntamos ‘Será que os expectadores vão aceitar isso?’ Então começamos a elaborar, a encontrar ajustes, em suma, a reduzir o novo, e terminamos com um clichê.

Isso aconteceu com Jean Lotte há uns vinte anos. Ele propôs a um produtor de rodar um filme sobre a vida dos santos dos primeiros séculos da Igreja. Ele conhecia muito bem o assunto e havia publicado um livro a respeito. Os dois concordaram que é uma história extraordinária, que nunca tinha sido filmada, portanto deveria ser feita. Eles envolveram um roteirista e todos trabalharam por mais de seis meses. O filme foi de fato filmado, mas, de mudança em mudança, não se tratava mais de uma história santa, mas de uma série noir com Eddie Constantine que se passava na Madrid de nossos dias. Eis o caminho de um roteiro. De tanto se perguntarem sobre por quê um filme tão longe de nós, de se perguntar qual personagem contemporâneo poderia ser o mais próximo de um santo de antigamente e descobrir que seria um detetive particular, sem nenhuma pressão do produtor, eles chegaram a fazer um filme completamente banal partindo de uma idéia bem original.

Se, por outro lado, como Hitchcock e Lubitsch, partimos de uma situação melodramática clássica e desenvolvemos essa idéia, ao fazermos um exercício de aprofundamento, ao introduzirmos pouco a pouco elementos que irão, digamos, pervertê-la, torná-la interessante, temos mais chances de chegar a um filme original do que se, desde o início, pensamos que iremos fazer algo que nunca foi visto.

Quando partimos de uma originalidade importante ou de uma grande novidade, contra nossa própria vontade, estamos nos protegendo. Estabelecemos estruturas de pensamento, medos, freios que agem e nos bloqueiam sem nos darmos conta.

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Traduzido por Ignácio Dotto Neto, roteirista, mestre em Teoria Literária pela UNICAMP, autor de Entreatos – o teatro em Curitiba entre 1981 e 1995, e Contracenas – o teatro em Curitiba contado por seus artistas.

Referência bibliográfica
Contracampo – Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Vol 10/11, Niterói: 2004, pp. 99-110.
[1] Filme de Andrej Wajda, roteiro de Jean-Claude Carrière.
[2] Institut des Hautes Études Cinématographiques (N.T.)


Indicações:


"La belle de Jour"
Luis Buñuel

"Belle de Jour foi talvez o maior êxito comercial de minha vida o qual atribuo mais às prostitutas do filme do que propriamente ao meu trabalho."

-Luis Buñuel -




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Parceiro e roteirista de Buñuel, um dos maiores responsáveis pela dinâmica narrativa de filmes como "O Fantasma da Liberdade" e "Este Obscuro Objeto de Desejo", texto obrigatório em dez de cada dez cursos de roteiro e cinema.




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Imagens Sonoras


Indubitavelmente, a vida de muitos de nós não seria a mesma sem o cinema, por outro lado, o número de pessoas que teriam suas vidas radicalmente transformadas se ampliaria enormemente se colocarmos em questão a música e o impacto que sua ausência causaria, é impossível imaginar o homem sem a música. Posso afirmar, sem temer por um engano ingênuo, que em qualquer sociedade, industrial ou não, com linguagem escrita ou oral, a música ocupa um espaço privilegiado.



Tendo isto em mente, pensei em escrever algo a respeito do encontro de ambas as artes, ou seja, gostaria de discutir a música no cinema. No entanto, não me proponho uma discussão original e personalizada, afinal, meus conhecimentos são escassos e preciso contar com aqueles com mais experiência do que eu, aqueles que já percorreram um caminho mais longo daquele que fiz até agora. Deste modo, faço uma pequena leitura e interpretação das opiniões de Andrey Tarkovsky sobre o uso de sons e da música no cinema.


Datando historicamente, a música tem acompanhado o cinema desde seu nascimento, sempre tendo por objetivo dar à imagem uma ilustração, uma moldura rítmica e intensificar a sua emotividade. Assim, desde seu princípio, alguns cineastas têm-se utilizado da música de uma forma que pode ser definida como caprichosa e automática. Inclusive, em muitos casos, concedendo a arte musical a triste e vulgar função de salvar uma cena que não funciona. E pelo modo como Tarkovsky concebe a arte, ele acredita que tem sido este um dos maiores erros na relação entre música e as obras cinematográficas, o “uso” da música no cinema e não a síntese orgânica desta com a imagem.


Acredito haver na forma como Tarkovsky concebe a ambas uma contradição aparente que pode ser conciliada. Num primeiro momento, ele crê que o mundo transformado pela música entra em conflito com o mundo transfigurado pelo cinema. As duas possuem linguagens próprias e se propõem a experiências sensíveis distintas. No entanto, - e é este o cerne da aparente contradição – ele afirma que a música no cinema é uma parte integral da vida humana. Assim, compreendo que a representação do mundo se tornaria impossível, no caso do cinema, sem a musicalidade intrínseca à vida humana. Ele mesmo coloca em questão suas motivações acerca da não utilização da música no cinema, expõe inclusive a intencionalidade de se fazer um cinema sem música. No entanto, admite ter falhado em suas tentativas de efetivar esta especulação teórica e afirma que o mais perto que chegou desta intenção foi em Stalker e em Notalgia.


Na concepção tarkovskyniana a música no cinema deveria funcionar como um refrão, sempre reafirmando o tema proposto e funcionando em plena harmonia com o mesmo. No máximo, poderia criar novas possibilidades de apreensão da imagem e transfigurar o sentido da mesma emprestando-lhe uma inflexão lírica distorcendo seu sentido - mas não mudando seu significado – ampliando, deste modo, o espectro da sua percepção. A musicalidade fílmica deve conduzir a emoção dando novos matizes ao sentido proposto, ajudando a concretizar o conceito geral da obra cinematográfica. Devendo, sobretudo, ser indissociável da imagem.


Assim, caberia ao artista em questão não permitir que a música fosse usada como um acompanhamento ou uma ilustração, ela não pode ser rebaixada a um mero complemento da imagem cinematográfica, deve ser uma parte orgânica da cena ou do filme. Porém, esta simbiose entre a música e a obra visual, comporta ainda alguns nuances problemáticos, sendo um deles, aquele recurso muito utilizado pelas novelas brasileiras, operar a música como um elemento que reforça o caráter dos personagens centrais do enredo, dando-lhes uma característica que não possuem, uma aura emocional artificial.


Não sendo utilizada como uma linguagem distinta da linguagem cinematográfica, mas intrínseca ao mundo representado pelo cinema, a música ganha seu lugar sem parecer artificial ou incidental.


Ainda, Tarkovsky faz uma divisão entre dois tipos de música; a música instrumental – acredito que ele esteja se referindo a compositores eruditos recorrentemente chamados a desempenharem um papel importante na obra tarkovskyniana, como Bach, Puccini, Purgolesi, Ravel, entre outros. Ele entende que a música instrumental tem uma autonomia que atrapalha bastante a sua dissolução no filme e o uso por parte do cineasta deve se dar de modo concessivo. Acredito que esta concessão parta de ambos, tanto do cineasta que deve obrigatoriamente compreender a autonomia da composição, assim como o compositor, por fornecer uma obra para criar outra obra. Neste sentido, a música invariavelmente ganha um caráter ilustrativo e acredito ser justamente a música instrumental o objeto da intenção de se abandonar o uso da música no cinema por Tarkovsky.


Numa outra concepção encontramos o que ele entende por música eletrônica - e que eu preferiria chamar de música eletroacústica. Inclusive, abrindo um parênteses, há no texto traduzido de Esculpir o Tempo, uma declaração acerca da música eletrônica, onde ele diz que “a música eletrônica deve ser depurada de suas origens ‘químicas’, para que, ao ouvi-la, possamos descobrir nela as notas primordiais do mundo” (Esculpir o Tempo, 1990, p. 195). Realmente meus conhecimentos sobre teoria musical são muito escassos, quase inexistentes, por isso creio que não entendi muito bem o sentido destas “origens químicas” da música eletrônica. Ficaria muito feliz de poder saber, se possível, a sua opinião, leitor deste texto, a respeito do assunto.


Talvez, o sentido deste “químico” diga respeito à idéia de que, diferentemente da música instrumental, a música eletrônica não detém a mesma autonomia, é justamente por suas capacidades de “se dissolver na esfera sonora geral”, podendo “ocultar-se por trás de outros sons” e permanecer “indistinta como a voz da natureza” que lhe impossibilita a uma maior independência.


Neste momento, acho interessante lhes apresentar uma pessoa, talvez, um dos artistas que mais trabalharam com Tarkovsky, foi sem dúvida, o compositor Edward Artemyev, responsável pelas trilhas sonoras dos filmes, Solaris (1972), O Espelho (1974) e Stalker (1979). Acredito que, infelizmente, os dois foram impossibilitados de realizarem mais trabalhos em conjunto em decorrência do exílio de Tarkovsky. Com a intenção de divulgar o trabalho deste artista e o de músicos que foram influenciados pelo mesmo, estou disponibilizando neste blog dois álbuns; uma coletânea que contempla vários compositores que trabalhavam com música eletroacústica na antiga União Soviética, a coletânea abrange o período de 1964 a 1971, Ans Synthetizer (Russian Early Electronics), e apresenta também composições de artistas como Oleg Buloshkin, Sofia Gubaidulina, Edison Denisov, Alfred Schnittke, Alexander Nemtin, Schandor Kallosh e Stanislav Kreitchi, incluindo o próprio Edward Artemyev e um trabalho mais recente de Artemiy Artemyev - Point of Intersection (Electroshock), realizado entre 1996 e 1997, sendo este compositor parente próximo e aluno de Edward e que absorveu muito do estilo de seu tutor. (Para mais informações, consultem o site: http://www.electroshock.ru/eng .


Mas apresentadas estas concepções acerca do uso da música, novas questões surgem e se impõem. Como já dito, houve por parte deste cineasta tentativas de minimizar a importância da música no cinema, embora estas tentativas não fossem um sucesso absoluto, pois não fora possível prescindir da música, elas reafirmaram posições teóricas e estéticas do autor, sendo principal a tese de que quando organizado, o material sonoro captado pelo artista no momento das filmagens ou fora delas, transforma-se, em sua mais pura essência, em música.


Tanto nos filmes de Tarkovsky quanto em suas reflexões - expressas no livro, Esculpir o Tempo e em alguns textos e entrevistas esporádicos – ele discute a questão do uso de sons e a relevância dos mesmos para o cinema. A influência dos trabalhos de Bergman se faz de forma contundente, autor o qual Tarkovsky chega a se referir como “um mestre do som”.


Tarkovsky divide os sons em quatro tipos; naturalmente captados; selecionados, sendo acentuados ou excluídos; sons que não pertencem ao quadro e os distorcidos. Os citados primeiramente, ele considera inviável o uso, os sons naturalmente captados transformam-se em um caos indistinto incapaz de se fundir à cena dissolvendo-a e impossibilitando fixar o sentido da imagem. No entanto, se organizados, estes mesmos sons se transformam em música eletroacústica.

De outro modo, existe sempre a possibilidade de se subtrair em determinadas situações alguns sons que deveriam fazer parte da cena e ressaltar apenas um dos mesmos, como no caso do eco de goteiras que permeiam longos quadros de sua filmografia, tanto de Nostalgia e Stalker quanto em A Infância de Ivan.

Sempre havendo também a possibilidade de se inserir ao quadro, sons que a princípio nada tem haver com a realidade representada, como a cena da libertação da família de Domenico em Nostalgia - uma das cenas mais belas de toda a história do cinema, em minha humilde opinião. Na cena, em preto e branco, a família do personagem é libertada por policiais chamados por vizinhos da família, depois de trancafiada por Domenico durante sete anos, prisão esta motivada pelo medo que ele sentia em relação ao mundo e pela espera de um juízo final. Após a libertação da família, o filho de Domenico sai correndo pelas escadarias de uma Igreja sendo seguido pelo pai, a cena fora desacelerada e o som constante de algo muito parecido com o ruído de um esmeril se faz ouvir. Logo depois de atravessar toda a escadaria, a criança se senta e pergunta ao pai: “É este o fim do mundo?”



Não quero entrar no mérito do significado da cena, tenho a tendência de sociologizar demais o que vejo e por isso prefiro recomendar a vocês que assistam e tirem suas próprias conclusões. Mas o som de um esmeril, que a princípio não possui nenhuma relação com a cena, amplia seu significado contextualizando-a em um mundo altamente complexo e industrial, impregnado por um materialismo doentio e uma religiosidade anacrônica que não consegue organizar um mundo tão caótico e anômico onde indivíduos mal conseguem se comunicar.

Outra das formas de utilização de sons e ruídos é a distorção dos mesmos, transfigurando-os até mesmo ao limite de não mais corresponderem à sua sonoridade original. Um exemplo famoso dentro da obra deste cineasta é a cena do carrilhão em Stalker, quando o próprio Stalker, o Escritor/Poeta e o Cientista/Professor adentram a Zona na busca pela realização de seus desejos. Por vários minutos, o som do atrito das rodas de aço do carrilhão nos trilhos da ferrovia vão ganhando uma proporção gigantesca e parecem ecoar no mais profundo recôndito das almas dos viajantes, o som vai ganhando eco e vai adquirindo uma outra ressonância, partindo de uma sonoridade mecânica dura e vai se transfigurando em um som espiritual mais difuso.


Depois destas breves considerações, que mais estimulam do que resolvem questões, gostaria de dizer que meu objetivo central não fora, de modo algum, apresentar um receita de bolo. Várias outras formas de uso do som e da música devem ser experimentadas na realização de obras audiovisuais e o próprio Tarkovsky considera o cinema uma arte ainda muito jovem e que não desenvolveu nem mesmo uma pequena perta de todas as suas possibilidades. O próprio acredita na possibilidade de fusão entre a música e o ruído, cita inclusive uma passagem de um filme de Bergman; Vergonha, quando este mescla uma bela melodia com o ruído de estática emitido por um rádio. Eu mesmo, em minhas modestas incursões por este tipo de produção tenho a intenção de tentar romper com alguns dos preceitos aqui apresentados, como, por exemplo, tentar reproduzir sons captados de forma naturalista na trilha sonora. No entanto, assim como Tarkovsky pensou ser possível prescindir da música e não conseguiu, poucas expectativas tenho eu, senão, a de um dia poder experimentar também.













Daniel




Aproveitando o teor da discussão, gostaria de apresentar aqui dois trabalhos significativos de compositores russos contemporâneos. Sempre lembrando que a intenção é a de apresentar este material, sem fins lucrativos e com a intenção de divulgar o trabalho dos autores. Em primeiro, um trabalho Artemy Artemiev, herdeiro direto do compositor Edward Artemiev, que trabalhou longo período com Andrei Tarkovsky, já o segundo trata-se de uma coletânea com diversos compositores significativos como Sofia Giubaidulina, Denisov, Schnittke e Kreitchi.






Artemy Artemiev - Points of Intersection




















1. Under Cover of the Skyies. 11:38.

2. Mirage (Dedication to the Swiss artist Felix Bosonnet (1943-1985)). 12:12.

3. Down by the Footsteps Leading to the Abyss. 21:40.

4. Point of Intersection. 18:59.

5. From & To. 10:37.




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Ans Synthetizer (Russian Early Electronics 1964-71



















1. Oleg Buloshkin: "Sacrament". 03:34

2. Sofia Gubaidulina: "Vivente Non-Vivente". 10:44

3-4. Edward Artemiev:
"Mosaic". 04:00
"12 Looks at the World of Sound". 12:52

5. Edison Denisov: "Birds' Singing". 05:05

6. Alfred Schnittke: "Steam". 05:50

7-8. Alexander Nemtin:
"Tears". 04:41
"I. S. Bach: Choral Prelude C-dur". 02:30

9. Schandor Kallosh: "Northern Tale". 05:38

10. Stanislav Kreitchi: "Voices of the West". 02:00

11. Edward Artemiev & Stanislav Kreitchi: "Music from the Motion picture "Cosmos". 12:15

12. Stanislav Kreitchi: "Intermezzo". 02:20



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