terça-feira, 28 de agosto de 2007

Baixio das Bestas – Cláudio Assis


O esgoto como consciência.

O naturalismo dos filmes de Cláudio Assis tem em seu distanciamento conseqüências das mais inócuas. Para mim, as únicas apreensões possíveis sobre seu filme, o Baixio das Bestas, não podem ser positivas, e se ele se pretende realista ou naturalista, o resultado foge da realidade “do mundo” perdendo-se no “seu próprio mundo” imundo e grotesco.

Um desfilar de personagens inumanas e sem liberdade alguma, condicionados pelo calor e pela pobreza, esta não só material, mas também espiritual – e consequentemente moral. Neste mundo Auxiliadora é um mero instrumento que se efetiva - e se aliena - não só na relação com seu avô e com os marginais que se reúnem em um cinema falido, mas inclusive com o próprio diretor que a utiliza como uma mera ferramenta para “auxiliar” na exposição de seu mundo, uma existência absurda e impossível que não se sustenta ao final - o próprio diretor não a mata para não perder seu “auxílio”. Ele a utiliza de forma abusada, seja para chocar com a nudez ingênua e sensual, seja para fazer um filme, por incrível que pareça, politicamente correto de “denúncia social”. Seus meios são chocantes e fortes, suas intenções são simplórias. Me parece que muitas feministas defendem o filme afirmando que este “retrata a realidade da mulher brasileira”. Creio que nem mesmo Cláudio Assis quis expressar isto.

O cinema, não pode ser a vida, está restrito em seus próprios termos a fazer recortes. Poucos cineastas conseguem apreender o mundo e a partir da vida realizar obras de arte universais, a estes, só podemos nos referir como gênios, o que não é o caso - e creio que Cláudio Assis nem almeja em sê-lo.

Deste modo, generalizar o sentido deste filme com a situação da mulher no país seria um exagero, ter a consciência de que pessoas são escravizadas com violência até maior do que a apresentada no filme é fundamental para que possa haver justiça, generalizar a questão seria ideologizar o problema e torna-lo uma mera ferramenta para “auxiliar” as disputas desta natureza. Neste caso, Auxiliadora seria triplamente explorada; sexualmente, esteticamente e politicamente.

Consequentemente, creio que o filme não consegue levar à tomada de consciência do problema, a própria estrutura naturalista e determinista do filme impossibilita qualquer ação efetiva – os plongées colocam os personagens ora como que em um microscópio, ora como em labirintos de cobaias. Não há propostas, nem ao menos estéticas, a beleza da fotografia é gratuita, assim como sua violência. Não há intenções, não há soluções, Auxiliadora esta “destinada” à prostituição como sua mãe o fora – creio que mãe de Auxiliadora seja a prostituta morta pelos “marginais do cinema”. Não há redenção alguma. E neste aspecto Cláudio Assis chega a ser extremamente corajoso, porém, reconhecer isto não é compartilhar de suas opiniões e concepções.

Quanto à interpretação do filme como um “filme-denúncia” tenho a impressão de que ele falha, justamente por esconder a tão almejada realidade. Ele caricatura o mundo dividindo-o simplesmente entre o bem e o mal – onde o mal reina soberano, inclusive. Seus personagens não possuem vida espiritual, são maus, com algumas exceções também caricaturais, não existe outra possibilidade. Em minha opinião, e nesta compartilho das concepções de Dostoievski, ninguém é tão mal que não possa ser capaz de cometer um ato de amor e de compaixão, ninguém é tão bom que não possa compactuar, inconscientemente, com as mais nefastas ações. Não há verdade neste filme.

Deste modo, se há uma falha terrível nos processos socializantes, capazes de dar lugar aos mais abomináveis monstros e aos mais apáticos santos, há falhas também na concepção do filme em conceber personagens caricaturais tão hediondos e sem vida. Estes seres não são humanos, não comportam a ambigüidade subjacente a qualquer ser moral. Assim, o filme é apenas uma máquina de causar sensações nauseantes destinadas a satisfazer um público masoquista e que sai do cinema chocado por saber que estas coisas acontecem.

Por fim, um aspecto interessante do filme é a gangue de marginais de classe média que se encontram no cinema falido e abandonado. É interessante notar que a leva de produções pernambucanas contemporâneas tem-se prestado a pensar o cinema, sobretudo o cinema brasileiro. No caso de Baixio das Bestas, a frase do líder da gangue sobre o cinema é muito clara....”o bom do cinema é que a gente pode fazer o que quiser”, ou seja, seres que se julgam acima da moral e prostituem o cinema utilizando-o como meio para seus objetivos. Porém, a pergunta que ficou em minha cabeça é se este plot é um modo inconsciente do próprio Cláudio Assis apresentar suas desculpas e justificar as suas verdades.

2 comentários:

Unknown disse...

Eu sempre desconfiei dessa linguagem de denúcia da podridão que Assis já mostrava em "Amarelo Manga". Vc já viu "Felicidade" do Todd Solondz? Sofre do mesmo mal!

Acho "Felicidade" um bom filme, mas essa onda de filmes que se querem independentes e que se fazem escarnecendo sem dó de tudo e de todos me deixa meio cabreiro. Além dos exageros para chocar o espectador (o close no cachorro lambendo o esperma do menino é tão ridículo quando o ato de fazê-lo em "Felicidade", bem como as cenas da mulher colocando o respirador na vagina ou a morte do boi em "Amarelo Manga") os filmes (de Assis e Solondz) são esquemáticos.
Em "Amarelo Manga", Assis queria mostrar a podridão da sociedade brasileira, disseram. E é somente o que ele faz. Não há um mínimo de lucidez analítica. Querendo mostrar que a sociedade do Recife é uma bosta, o cara faz um filme onde todo mundo é revelado como sendo uma bosta. Não há contraponto. O mundo é escroto e pronto, a sociedade é uma porcaria e acabou, enfim: é muito fácil construir um filme em que nada vai contra o que vc quer colocar. Afinal, quando todos os outros são ruins o que sobra? Nada. Ou talvez sobre: o cineasta!
Talvez Assis queria safar a si mesmo como narrador e denunciador das mazelas. "Amarelo Manga" era ensimesmado e parcilista e foi feito por alguém que quer mostrar que a dura realidade é composta da rudeza de um bando de gente nojenta. O único isento desse discurso crítico é o próprio filme, o dono da crítica, que não coloca a si mesmo em jogo ao desmarcarar a miséria alheia (de todos os outros na verdade). Assis, como narrador, talvez se achasse melhor que seus personagens.
Ainda não vi "Baixio das Bestas", mas pelo visto Assis continua com os mesmos defeitos. Agora te pergunto, Dannyeu: ele refaz um filme ensimesmado e que considera a si mesmo melhor do que a "realidade" que almeja apontar?

Cinestesis disse...

Talvez, no ato de colocar o plot dos "marginais do cinema" ele chame para si a responsabilidade, no entanto cabe pensar se ele se coloca entre os "marginais do cinema" ou no "cinema marginal". O que não é a mesma coisa.

Por isso acho interessante que vc assista ao filme, mesmo que tenha de fazer um certo esforço....porém, independente de ele se redimir ou não, de aceitar uma determinada situação problemática, enfim, de adquirir uma certa consciência sobre seu trabalho, isto não o redime.