Tentando preparar o terreno para uma análise da produção cinematográfica brasileira, contemporânea, gostaria de fazer um balanço sobre a história de nosso cinema. Deste modo, vou começar por uma brave análise do movimento que veio a ser denominado Cinema Novo. Para tal, tomarei como referência bibliográfica o texto de Fernão Ramos, “História do Cinema Brasileiro”, onde ele analisa o desenvolvimento dos debates e da produção das décadas de 50, 60 e início dos 70, as propostas iniciais e as rupturas daqueles que de algum modo ou de outro aderiram ao movimento e/ou se rebelaram.
Porém, para chegar ao texto de Ramos, pretendo fazer uma pequena introdução com o objetivo de deixar uma simples concepção de cinema a qual irá balizar meus argumentos e concepções.
Há uma bonita concepção de José Carlos Avellar acerca do cinema, no final da introdução de seu livro “O Cinema Dilacerado”, que parte de uma experiência espontânea e corriqueira. O brilho crepuscular do sol refletido e/ou decomposto como por um prisma em uma vidraça qualquer suscita uma rara beleza e encanto, sobretudo, àqueles dispostos a perceber estes espetáculos cotidianos e sutis. Por sua vez, fitar diretamente o sol é, sem dúvida, uma ação desestimulada por qualquer oftalmologista e mesmo que alguém queira fazê-lo o fará por poucos segundos antes de ficar totalmente ofuscado, nunca conseguindo visualizar a “realidade” solar.
Assim, o cinema seria uma espécie de prisma ou espelho por onde “o mundo”, “a vida” ou “a realidade” poderia vir à tona e “surgir” diante de nossos olhos. Por sua vez, “o mundo” seria totalmente inacessível aos nossos olhos nus. Gosto desta concepção e creio que não se trata de concordar ou discordar, se ela dá conta ou não do que é o cinema, mas apenas ressaltar que é uma concepção interessante.
Por outro lado, o cinema também é indústria, decorrente de processos sociais e históricos desencadeados pelas constantes revoluções industriais dos séculos recentes, marcado por uma vasta e complexa divisão de trabalho, constantemente coptado por regimes políticos e artistas e ideólogos das mais variadas tendências, dos anarquistas mais iconoclastas aos mais fervorosos conservadores o cinema tem “refletido” os mais variados nuances e brilhos. Dos países que ocupam as vanguardas do capitalismo até países com escassos parques industriais, muitas vezes, países destruídos por guerras civis e mundiais, todos, de algum modo, produziram seus filmes.
Na grande maioria dos casos as próprias condições políticas, sociais e econômicas destes países e regiões de um modo ou outro influenciaram em seus estilos e técnicas. O cinema alemão e suas sombras abissais, o cinema americano e sua montagem clara e objetiva, o cinema soviético marcado por suas perseguições implacáveis e pela propagando socialista extenuante, assim como alguns cineastas russos e sua espiritualidade impregnada em planos eternos e melancolicamente críticos da nossa modernidade desencantada. Enfim, muitos casos poderiam ser aqui citados, com diferentes níveis de profundidade nas afirmações e com muitas divergências.
Dentro destas escolas e tendências, cada país (ou povo, ou região, ou grupo) elabora e re-elabora dentro de suas possibilidades e tradições culturais sua produção e compreensão de cinema. Com o Brasil, claro, isto é uma verdade. A despeito das discussões acerca da existência ou não do nosso cinema (eu já ouvi dizer que não existe cinema brasileiro, e não foram poucas vezes), gostaria de parafrasear Antônio Cândido e adaptar a sua concepção acerca de nossa literatura para entendermos nossa produção cinematográfica, gostando ou não de nosso cinema, este é o cinema que temos e é este cinema que nos expressa.
Deste modo, creio que anárquico ou não, temos um cinema, inclusive com uma vasta historiografia e experiências, há a busca, há os encontros e os desencontros. Há os desacertos da tentativa industrial da Vera Cruz, da Atlântida, há o bombardeio exuberante e verborrágico glauberiano, há uma história.
Deste modo, quando Avellar nos fala que;
“...o que melhor caracteriza o cinema que fizemos neste período (e também o que fizemos um pouco antes dele e continuamos a fazer um pouco depois dele) é a existência simultânea e algo indisciplinado de diferentes estruturas cinematográficas” (AVELLAR, 1986, pg. 9).
Embora o autor se refira ao período que vai desde a promulgação do AI-5 até a abertura política, creio que este argumento possa ser atribuído a toda história de nossa cinematografia e também conseqüência daquilo que alguns preferem chamar de subdesenvolvimento e outros por identidade brasileira pós-colonial e católica. Neste caso, o que entendo por Brasil é um país que não se modernizou efetivamente, mas nem por isso deixa de ter sua história só por que ela é caótica e tumultuada. Entendo que o autor defendia a pluralidade, mas pretendia uma pluralidade harmônica ao invés de dissonante, porém, creio que pedir a um cineasta como Glauber Rocha o mínimo de coerência já seria uma árdua tarefa, imagine de todo os cineastas brasileiros!?
Feita estas observações, me debruço sobre o texto de Fernão, assim como outras fontes citadas pelo mesmo, onde ele apresenta o embrião do que viria a ser o Cinema Novo e uma divisão marcada por três momentos importantes do mesmo, momentos estes representados por três filmes emblemáticos e que expressam o que poderíamos chamar de “infância”, as transformações e as rupturas inerentes ao Cinema Novo.
O Início de um movimento
A onda inaugural do que viria a se consolidar como Cinema Novo seria aquela com produções realizadas pelo CPC (Centro Popular de Cultura) vinculado a UNE, como a coletânea de curtas; “Cinco Vezes Favela”, e algumas significativas produções baianas (Bahia de Todos os Santos, A Grande feira, Tocaia no Asfalto, Barravento, entre outros), além de algumas produções de Nelson Pereira (Rio Zona Norte), Paulo César Saraceni (Arraial do Cabo), Linduarte Noronha (Aruanda,) entre outros.
Esta produção continha de forma geral e mais explícita o problema de um deslocamento dos próprios autores em relação ao mundo que queriam retratar. Na sua grande maioria, oriundos de uma classe média bastante culta - inclusive, uma geração considerada muito mais culta e intelectualizada que a dos produtores e artistas da geração anterior.(DAHL, 1966, pg.196)
Por outro lado, seguindo tendências do momento que davam uma importância especial ao cinema de autor e do autor no cinema - muito em voga depois da Novelle Vague francesa - e questionando a produção anterior ao período saturada pela chanchada e dos fracassos da Vera Cruz e da Atlântida, esta tendência irá tentar reinventar o cinema brasileiro. Com acertos e erros.
Neste caso, a produção desta fase inicial peca por uma concepção populista do cinema, este que deveria servir de instrumento de conscientização das classes oprimidas[1], e que na verdade acabou caricaturando de forma preconceituosa tanto o povo como as elites econômicas e políticas. Deste modo, o que se apresentou foram filmes simplistas que formatavam a realidade e transpunham “uma ortodoxia marxista mal digerida, que transfere mecanicamente para o cinema esquemas elaborados em função da abordagem do processo industrial na produção social como um todo” (RAMOS, 1987, pg.303)[2].
Além do mais, estaria marcada por uma linguagem simplista, que não deixaria...
“...à realidade a menor possibilidade de ser mais rica, mais complexa do que o problema que o diretor queria expor, tal como aparece no filme, a realidade não dá margem a nenhuma outra interpretação além do problema apresentado. É uma espécie de realidade asséptica que permite uma compreensão e uma interpretação única: a do problema enunciado!”(BERNARDET, 1965, pg 221).
Bernardet, embora reconhecesse a importância de “Cinco Vezes Favela” nunca teve complacência com o que viria a ser chamado cepecismo, ou seja, a tendência, como já dita anteriormente, de realizar um cinema engajado com as classes ditas populares da qual muitos dos diretores não eram oriundos.
Neste momento, talvez nem mesmo os diretores e artistas envolvidos na dura aventura de realizar seus filmes e buscar uma possibilidade de linguagem tenham percebido a potência e autonomia de seus anseios. Talvez as coisas não estivessem muito claras, mas gradualmente iriam se constituindo e se desenvolvendo até atingir um clímax. Assim, em 63 uma vasta produção já havia sido realizada e é neste momento, que de uma fértil onda de produtividade podemos delimitar aquilo que seria um primeiro ciclo fechado do dito Cinema Novo.
Primeiro ciclo do Cinema Novo
Sendo escolhido por Fernão Ramos para representar o que ele chama de primeira “trindade” do Cinema Novo; Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha, Os Fuzis de Ruy Guerra e Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, todos de 1963. Filmes que retratam um Brasil remoto e ensolarado, um Brasil distante e quase mítico que é palco de conflitos políticos e sociais. É bom lembrar que estes filmes não inauguram o Cinema Novo, mas se tornam ícones representativos de sua primeira fase.
Em seus argumentos, estes filmes efetuaram um distanciamento ainda maior do que o que havia sido feito anteriormente em relação às classes populares, se filmes como “Cinco Vezes Favela” buscavam narrar os problemas dos “economicamente pobres” urbanos[3]. Agora a distancia se acentuou e o foco temático passaria a ser o sertanejo nordestino em seu “habitat” natural. Além disso, buscou-se uma maior elaboração na linguagem fugindo do didatismo simplista habitualmente utilizado para qualquer tipo de propaganda; comercial, ideológica ou institucional. Pouco após a ruptura com o CPC, causada em função justamente de problemas relacionados à delimitação conceitual do que seria o Cinema Novo, afirma Fernão Ramos sobre Glauber que este tinha especial atenção à questão da linguagem devido ao temor de que “a sua arte e o Cinema Novo em geral viessem a ser instrumentalizados em função de necessidades políticas imediatas” (RAMOS,1987,pg.334). Não bastando os problemas com o CPC, o “pensador” do novo movimento cinematográfico ainda teria por modelo negativo produções como “O Pagador de Promessas” e “Assalto ao Trem Pagador” - ambos de 1962 - os quais ele compreendeu como produções pautadas por modelos de produção e narrativo que atuavam “esmagando a expressão contemplativa da miséria nacional transformada em fonte de renda pelos produtores a serviço de uma ideologia do entorpecimento” (Idem, pg.335).
Não obstante a questão da linguagem e conteúdo, outro aspecto fundamental da arte cinematográfica fora pensada por estes autores, a questão da própria produção.
É certo que desde Nelson Pereira e seus filmes “Rio 40 Graus” e “Rio Zona Norte” novas formas de produção foram pensadas no sentido de fugir à produção industrial, sendo tentadas formas desde esquemas como mecenato, doações e cooperativas até cotas e subsídios minguados de setores estatais. A conseqüência fora uma incorporação intencional das próprias dificuldades de modo a construir um estilo particular, um exemplo excelente desta busca é a fotografia estourada, sem filtros, que aquece aridamente muitos dos filmes deste período. Porém, os contratempos não são poucos, e o endividamento de muitos dos autores engajados assim como deficiências técnicas insuperáveis, o som em muito destes filmes, como em os Fuzis. Muito deste posicionamento fora influenciado por uma radicalização com forte influencia marxista mal digerida que jogava a “água da bacia fora junto com a criança”, pois confundia todo o tipo de indústria cinematográfica com o modelo de indústria fracassado vigente no Brasil no período anterior. Talvez este seja um dos maiores erros de muitos autores que se atiraram com muito ímpeto à produção independente sem planejamento e ao menos conseguiram realizar seus filmes ou custear a própria produção. Glauber tinha uma compreensão que as escolhas estéticas do autor deveriam ser pautadas em escolhas éticas, e um autor que se dispusesse a participar da vanguarda do cinema novo deveria optar pelas escolhas de sua elite e sua leitura particular do pensamento marxista ao qual Glauber tinha franca adesão.
Em relação a estes três filmes que marcam o ciclo inicial cinemanovista gostaria de salientar que não pretendo aqui entrar no mérito da análise destes e nem de apresentar seus argumentos, pressuponho o conhecimento tanto destes como dos filmes pertencentes às outras tríades, pretendo apenas apresentar os argumentos gerais sobre estes ciclos e o desenvolvimento inerentes aos mesmos.
Quanto a este primeiro ciclo e seus resultados dois autores são bastante contundentes em suas críticas e vieram a contribuir e muito para repensar a produção inicial “autenticamente cinemanovista”, Gustavo Dahl no que tange aos meios de produção materiais do filme e Jean Claude Bernardet e a reflexão sobre a linguagem destes filmes.
Se por um lado, estes autores pensavam num sistema “alternativo” de produção, este se viu inviável, segundo Fernão ramos citando Gustavo Dahl:
“...a maravilhosa alquimia pela qual alguns visionários transformam prejuízos financeiros em altas manifestações da cultura brasileira, tornou-se insustentável”. (RAMOS, 1987, pg.354)
Gustavo Dahl, sem ingenuidade e romantismo, visualizava uma concepção de cinema que estivesse antenado com perspectivas de mercado (público), tendo a clara concepção de que o cinema é indústria, ou ao menos, uma arte industrial extremamente complexa e integrada a certas demandas, e que deveriam levar em conta questões como produção, distribuição e exibição. Dahl parte, em seu texto “Cinema Novo e Estruturas econômicas Tradicionais” (1966) do pressuposto de que não apenas o cinema brasileiro passa por uma crise, mas sim todo o cinema mundial. Compreende que cada centro produtor re-elabora suas concepções e produção de cinema com o objetivo de superar crises das mais diversas, como, por exemplo, o surgimento e voluptuosa expansão da televisão. Para Dahl, existem questões centrais acerca do desejo e natureza do público que deveriam ser efetivamente pensadas antes da produção de um filme ou de uma indústria ou movimento cinematográfico viável.
São estes os pontos cruciais para Dahl:
· “O Cinema deixou de ser a arte diversão das massas para ser a arte diversão da classe média”.
· “O público não vai mais ao cinema, genericamente, automaticamente; o público vai agora ver um filme preciso, do qual exige precisas qualidades, como arte ou como espetáculo”.
· “O público pede dos filmes o que a televisão não lhes dá: fasto, violência, sexo, erotismo, profundidade psicológica, beleza plástica, qualidade artística estratificada”...
· “Qualquer cinematografia que não a norte americana só pode subsistir na medida em que se apóia em seu mercado interno e dentro dele reserva para si os meios indispensáveis a sua continuidade”.
· Não há mais o sucesso médio: um filme ou vai muito bem ou vai muito mal”.(DAHL, 1966, pg. 194-195)
Entre outros pontos, inclusive alguns já citados por mim neste texto, como por exemplo, a questão dos fracassos da Vera Cruz e da Atlântida, por motivos específicos; das diferentes estratégias de enfrentamento da crise adotada por grandes centros produtores e da superioridade cultural e intelectual dos novos diretores do Cinema Novo, ele vislumbra um cenário cinematográfico incipiente, desenraizado, artisticamente anacrônico e industrialmente mal formulado marcado por conflitos agudos entre dois grupos antagônicos, sendo um destes grupos formados por exibidores brasileiros aliados a distribuidores internacionais (sobretudo norte-americanos) contra distribuidores e produtores brasileiros, onde o principal prejudicado, sempre fora os produtores brasileiros, estes que amargavam prejuízos astronômicos via de regra. Destarte, a posição defendida por Dahl[4] seria a “transformação da estrutura semi-industrial do cinema brasileiro numa estrutura verdadeiramente industrial, através da difusão de uma mentalidade empresarial”. (DAHL, 1966, pg.203)
Entendendo esta industrialização dividida em vários setores interligados, desde a produção cinematográfica até produção de material como película, equipamentos de som, etc, assim como a modernização dos serviços de distribuição e exibição, criando “condições para que os diretores brasileiros universalizem e apurem sua linguagem através de seu uso freqüente, e em liberdade”.(IDEM, pg.204)
O que concordo na perspectiva de Dahl é que o público deve ser atendido, uma vez que tanto em regimes socialistas de economia planificada ou em sistemas capitalistas de mercado é o público que legitima em última instância o sucesso ou fracasso de um filme, pois diferente de um texto literário ou poema, que requerem basicamente papel e lápis, ou a pintura que requer uma pequena variação de tintas, por sua vez o cinema requer pesados recursos humanos e materiais oriundos geralmente do público que o prestigia.[5]
No que tange a linguagem os argumentos de Bernardet já foram de algum modo apresentados, mas merecem aqui uma maior atenção. Estes argumentos constam no artigo “Para um Cinema Dinâmico” e estão incluídos de forma geral no livro “Brasil em tempo de Cinema”, ambos presentes na bibliografia do presente trabalho.
Bernardet parte da idéia de que em momentos de transformação social e/ou crise ocorre uma reestruturação da linguagem e esta deve enfrentar novos paradigmas simbólicos. Assim, o didatismo não se apresenta como uma forma razoável de apreensão do mundo uma vez que se torna anacrônico não conseguindo problematizar questões sociais e estéticas cruciais, neste sentido, pode-se perceber um certo paralelismo entre Bernardet e Glauber diante de questões ligadas às chanchadas, à produção cepecista e até mesmo a filmes como o “Pagador de Promessas” e “Assalto ao Trem Pagador”. A sociedade brasileira naquele período assim como o cinema mundial e brasileiro encontram-se em uma profunda crise[6]. Esta compreensão da crise inerente ao mundo contemporâneo remete constantemente a um repensar da linguagem e dos seus símbolos. Neste sentido, Bernardet faz uma ressalva e talvez neste sentido faça críticas a experimentalismos formais exagerados que reformulam símbolos gratuitamente:
“O que se dá com mais freqüência é que artistas só aparentemente interessados nas mudanças e fazendo falsos esforços de adaptação passam a mudar gratuitamente os símbolos”...”mas não basta mudar os símbolos, signos, conteúdo, forma, etc, devem se propor a discutir novas questões, sua nova dinâmica”(BERNARDET, 1965, pg.219)
Para ele, o artista deveria omitir-se da descrição e provocar a reflexão, deve-se fazer com que o publico venha a tomar uma posição em relação ao mundo. Porém, creio que - agora o que faço aqui é uma leitura extremamente pessoal - é particularmente difícil ao artista, autor ou diretor de cinema realizar tal façanha, uma linguagem didática e simplificada e preguiçosa assim como uma linguagem exaustivamente rebuscada e confusa dificultam a tal tomada de posição diante do mundo. Numa sociedade complexa e com uma divisão do trabalho altamente diversificada não se pode forçar a todo público de cinema a adentrar o universo particular de autores grandiloquentes detentores de verdades herméticas. O limite entre exercício estilístico na linguagem e da comunicabilidade acessível é tênue e sem duvida caracterizam os grandes artistas. O que não quer dizer que o experimentalismo não seja pertinente e até mesmo crucial para a produção cinematográfica.
Outro aspecto amplamente apontado por Bernardet a respeito deste primeiro ciclo diz respeito ao distanciamento do universo de origem dos autores e obras em questão do mundo o qual eles retratam o que apenas reflete desenraizamento de sua classe e o vazio que preenche as suas existências, realizando na busca pelo outro uma legitimação da própria existência e uma (dês)conscientização acerca de um si alienado.
Os erros e os acertos deste primeiro ciclo de produção do Cinema Novo comportam para mim as questões mais relevantes na discussão sobre o movimento e toda produção da década de sessenta.
Segundo e Terceiro Ciclos do Cinema Novo
Neste ciclo[7] encontramos um momento de tomada de consciência dos próprios autores que agora abandonam o Brasil inóspito e retornam às metrópoles e a sua própria vida, uma vida desenraizada e pautada por uma violenta crise política, os filmes escolhidos para representar esta segunda fase são; “O Desafio”, de Paulo César Saraceni (1965), “Terra em Transe”, de Glauber Rocha (1967) e “Bravo Guerreiro” de Gustavo Dahl (1968). Assim, o principal diferencial entre o ciclo anterior e este diz respeito à questão da mudança de foco dos argumentos deixando de lado o Brasil distante e passando a retratar a realidade dos jovens cineastas. Mesmo que algumas inovações na linguagem sejam mantidas, os roteiros e a montagem sofrem uma amortização no experimentalismo e os filmes tornam-se mais compreensivos além de ainda manterem o papel autoral intocado e ainda assim como a mesma perspectiva independente em relação ao esquema industrial.
Num terceiro momento, filmes como “Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” de Glauber Rocha (1969), “Os Herdeiros” de Cacá Diegues (1969) e “Os Deuses Mortos” de Ruy Guerra (1970). Este terceiro ciclo já é marcado para uma acentuação do espetáculo como forma de atender as demandas do público, este momento prima pela busca de encher os olhos do espectador com cenários grandiosos e consequentemente uma abertura de concessões em relação á quantidade de recursos requeridos para a produção dos filmes decorrente de uma maior preocupação com o retorno financeiro dos mesmos. Outro aspecto é a acentuação do grotesco como uma forma de oferecer a violência espetacular e catártica tão desejada pelo público, violência muitas vezes representada por longos berros dilacerados denotando emoções extremas.
É inútil dizer que mesmo esta terceira fase fracassa o que nos faz retornar e repensar as posições de Dahl e de Bernardet já na metade inicial de década de 60, as concessões feitas pelos cinemanovistas não foram suficientes e neste período mesmo o principal ideólogo do Cinema Novo joga a toalha mudando então seu discurso, segundo Ramos sobre Glauber:
“o diretor reformula diversas de suas opiniões anteriores sobre o cinema industrial e a comunicação com o público. Esta emerge agora em primeiríssimo plano, relacionada não só ao setor de distribuição mas também à produção. Para Glauber ‘um dos problemas que existe na indústria são os diretores com [complexo de gênio]’(seriam os antigos autores?) ‘que sempre falam mal dos produtores’, fazem filmes horríveis, obrigando o produtor a cortar a obra”(RAMOS, 1987, pg.373).
Conclusão
Glauber demorou uma década para perceber estes pontos, mas mesmo assim, quando tudo parecia perdido este ataca em outro flanco, partiu rumo a novas experimentações, aproveitando uma pausa nas gravações de “Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” ele aproveita alguns excedentes de produção e de profissionais disponíveis e filma “Câncer”, reinventando contraditoriamente a si próprio e dando inicio a mais um movimento polêmico e dissonante que viria a ser chamado de Cinema Marginal, o que será um outro capítulo da historiografia do cinema brasileiro. Embora existam divergências acerca do lugar de “Câncer” dentro deste nova cinematografia, queiram ou não, Glauber estava no mínimo antenado com o movimento que teriam como representantes, Julio Bressane, Esganzerla e outros.
Deste modo, tendo esta leitura particular de nossa cinematografia, compreendendo a sua exuberância e a confusão intrínseca à mesma, sempre tentando encarar isso de modo positivo vejo dentro destes movimentos e a partir de autores independentes como Biáfora e Khoury um sincero interesse em superar às dificuldades da produção cinematográfica brasileira. Não fecho necessariamente com nenhuma das visões defendidas de forma categórica e intransigente, embora perceba a necessidade de modernização, o que quer dizer uma melhoria da indústria e inovação responsável da linguagem. Percebo também a importância, mesmo hoje, de que os filmes sejam tratados como produtos em si próprios, conseguindo autonomia diante do mecenato estatal e de financiamentos oriundos da iniciativa privada, ambos que atuam no sentido de submeter os filmes aos seus próprios interesses de propaganda e contra os quais os cineastas citados travaram intensa luta, inclusive sob pena de não realizarem seus projetos.
Voltando a citar Avellar, não vejo de forma tão firme a necessidade de balizar toda a produção cinematográfica, que ela seja dissonante e cheia de vida, que continue a buscar seus pequenos ou grandes públicos realizando obras primas com fracassos financeiros ou sucessos de bilheteria. Talvez, eu concorde com Glauber em muitos poucos aspectos, entre eles o de que “o caminho do cinema são todos os caminhos”.(ROCHA, 1981,pg.148)
Bibliografia
AVELLAR, José Carlos. Introdução. IN: O Cinema dilacerado. Rio de Janeiro. Alhambra. 1986.
BERNARDET, Jean -Claude. Brasil em tempo de cinema. Ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1967.
________________________ Para um cinema dinâmico. In: Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. Nº2, maio de 65.
DAHL, Gustavo. Cinema Novo e estruturas econômicas tradicionais. In: revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. Nº 5-6, maço de 1966.
RAMOS, Fernão. Os Novos Rumos do Cinema Brasileiro (1955-1970) In: História do Cinema Brasileiro. (Org) RAMOS, Fernão. Art Editora Ltda. São Paulo. 1987.
ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Alhambra, Rio de Janeiro. 981.
Internet
http://cinestesis.blogspot.com/2007/07/sobre-os-cinemas_03.html
[1] Esta uma postura talvez influenciada em demasia pelo cinema soviético, sobretudo Eisenstein e a preocupação de um cinema engajado politicamente cuja principal função seria a conscientização do proletariado.
[2] Esta crítica é dirigida a Nelson Pereira, mais especificamente à tese apresentada pelo mesmo no Congresso paulista de Cinema Brasileiro, em 1952, mas que podem ser dirigidas a toda produção cinematográfica em questão.
[3] Embora enfoca-se também o problema da migração nordestina rumo à região sudeste, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo.
[4] É importante lembrar que Gustavo Dahl fora o primeiro Presidente da ANCINAV- Agência Nacional de Cinema cuja gestão durou de 2002 a 2006.
[5] Gostaria de incluir aqui um texto que escrevi e postei neste blog, Sobre os Cinemas,
. http://cinestesis.blogspot.com/2007/07/sobre-os-cinemas_03.html
[6] Por outro lado, é importante lembrar que alguns autores, como Marx, compreendem a sociedade capitalista moderna como uma sociedade que tem a crise como sua condição de existência, como dito no próprio Manifesto Comunista; “Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado será profanado”.
[7] Prefiro o termo ciclo por este se referir a períodos históricos dinâmicos. O termo trindade me parece por demais místico, emprestando um encantamento às obras que não me parece muito pertinente.