domingo, 11 de maio de 2008

Quando a Arte é oxigênio.







O cineasta (“O Maior”, segundo Ingmar Bergman) premiado em Cannes com “O Sacrifício” fala do Exílio e da arte na URSS.


O nome de Andrei Tarkóvski certamente não diz muita coisa para o grande público. Sabe-se dele, por conta do prêmio de júri em Cannes para o seu filme “O Sacrifício, que é u m cineasta russo dissidente em luta contra o câncer. Para Ingmar Bergman ele é ‘o maior, o que inventou uma nova linguagem, bem de acordo com a natureza do cinema, já que captura a vida como um reflexo, como um sonho”. No Brasil, os cinéfilos conhecem pelo menos dois trabalhos de Tarkóvski, ambos próximos da ficção científica, mas sem o frenesi tecnológico que domina o gênero: Solaris também premiado pelo júri de Cannes em 1972 e que muitos viram como uma resposta do Leste ao 2001 de Stanley Kubrick; e Stalker , de 1979, que o público elegeu o melhor filme de recente Mostra Internacional de Cinema, no Museu de Arte de São Paulo.


Há quem, a exemplo de Bergman, considere Tarkóvski o maior cineasta russo vivo - um conceito reforçado pelo caráter de seus filmes, muito pessoais e poéticos, que não fazem concessões nem aos apelos de bilheteria fácil nem às imposições dos burocratas soviéticos. A vida, e tudo o que ela contém de contraditório e absurdo – é a matéria prima desse homem de cinema obcecado pela busca da beleza e do inesperado. Há um ano Andrei Tarkóvski optou pelo exílio e foi morar na Itália, onde já havia realizado um filme em 1983 – Nostalgia – a convite da RAI (Rádio e Televisão Italiana) e autorizado pelos burocratas soviéticos. O Sacrifício, premiado este ano em Cannes, foi filmado na Suécia, com apoio do Ministério da Cultura da França. Nesta entrevista à VISÃO, Andrei Tarkóvski explica as razões que o fizeram deixar a União Soviética.


Tarkóvski - Depois que Nostalgia ficou pronto e foi exibido em Cannes, escrevi uma carta às autoridades do cinema em Moscou e até ao Comitê Central do partido, e a Constantin Chernenko, que estava lá na ocasião, pedindo permissão para ficar trabalhando mais três anos no exterior e para que meu filho Andrei e minha sogra viajassem ao meu encontro - minha esposa já estava comigo. Durante este período eu faria um filme e depois voltaria para casa. Esperei anos por uma resposta.


Edelhajt – Sua decisão foi influenciada pelo desejo de trabalhar em condições melhores, livre de restrições e pressões a que estava sujeito?


Tarkóvski – Não, absolutamente. Não dependo de ninguém e sempre fiz os filmes do jeito que queria. Por isso, talvez, nunca fiquei rico com o cinema, o que para mim também não tem a menor importância. A minha decisão de não voltar à União Soviética não significa que eu considere o mundo e as idéias divididos em dois campos diferentes. Somente os idiotas fazem este tipo de distinção entre as pessoas do ocidente e as do Oriente.


Edelhajt - No filme “Nostalgia” há uma cena em que o poeta, questionado, declara com amargura: “E o que você sabe da Rússia? Você não sabe nada.” Esta é uma reação típica de alguém do Leste, principalmente da Rússia. Mas é, também, reveladora de todos os complexos que os Europeus do Leste têm em relação ao resto do mundo.


Tarkóvski – As palavras do poeta são minhas palavras. Quanto mais eu vivo no Ocidente, mais estou convencido, ainda que isso possa parecer ridículo; o que as pessoas sabem realmente da Rússia?


Edelhajt – “E o que as pessoas deveriam saber”?


Tarkóvski – Não sei. É algo que é preciso sentir. O que quero dizer é que, se a Rússia representa uma ameaça para o mundo hoje, também representa uma forma de esperança – e isso não tem nada a ver com a política nem com o comunismo. A esperança está na enorme força espiritual do povo russo, que desempenhará importante papel na evolução geral da civilização no futuro. E isso não tem nada a ver com nenhum processo político. É um fenômeno espiritual.


Edelhajt – As autoridades em Moscou nunca aceitaram seus filmes, quer pela sua forma, quer pelo seu conteúdo...


Tarkóvski – Mas não é por isso que meus filmes desagradam às autoridades. Elas percebiam que havia algo de fundamentalmente inaceitável em meus filmes, mas nunca puderam pôr as mãos neles. Sabe por quê? O que perturbava as autoridades soviéticas não era nem os conteúdos nem as idéias dos filmes, e sim o aspecto artístico em si. Elas recusam-se a aceitar que a arte em sua forma pura, possa existir. E o que torna a arte poderosa não são as idéias que ela transmite – as pessoas que acreditam nisso estão enganadas e são, em geral, visionárias. O que torna a arte poderosa é, exatamente, o fato de ser arte, a manifestação de um fenômeno indefinível que resiste às prescrições da vontade humana e dos sistemas sociais.


Edelhajt – Há dez anos o diretor soviético Boris Barnet suicidou-se e, depois, houve o caso de Sergei Paradzhanov (diretor de “Cavalos de Fogo”, exibido no Brasil), que passou anos na prisão. Casos como esses não são comuns no cinema russo?


Tarkóvski – Nesta vida, se paga por tudo o que se faz, depois de sair da prisão, Paradzhanov fez m filme e começou agora outro. Quanto ao suicídio de Barnet, respondo dizendo que também no Ocidente o número de suicidas não é desprezível. Portanto seria ingênuo tirar conclusões destes dois casos específicos ou tirar daí alguma teoria. Mas voltando a falar de arte, de cinema, observo que no ocidente a arte parece menos essencial do que é para nós. Aqui, somente o sucesso financeiro parece dar uma razão suficiente para viver. O que quero dizer é que na Rússia a vida sem alguma forma de consciência espiritual parece absolutamente impensável.


Edelhajt – Será esta uma das características das nações cujo povo não goza de liberdade individual? E, desculpe, não há nessa pergunta nenhum sentido pejorativo...


Tarkóvski – Não sei. Talvez.


Edelhajt – Na Rússia e estados vizinhos criam-se mitos e as pessoas aceitam com facilidade tudo o que possa compensar ou substituir as liberdades fundamentais que perderam...


Tarkóvski – Não é isso que eu queria dizer. Não estava pensando na arte oficial, aquela que é permitida. Estava pensando na arte em geral, no significado e na missão da arte. Em Leningrado, há um jovem diretor, Alexander Sokúrov, que é um verdadeiro gênio. Ele conseguiu concluir um filme que, normalmente, seria condenado a nunca ver a luz do dia e sequer a ser filmado. Terminada a montagem, as autoridades, suspeitando que o filme não fosse adequado à exibição pública, exigiram uma cópia. Sokúrov recusou e ameaçou pular da janela junto com a cópia caso elas tentassem obtê-la pela força. As autoridades propuseram então que o filme fosse exibido normalmente e ele aceitou. Resultado: Sokúrov nunca mais viu a cópia do seu filme. Com isso quero dizer o seguinte: aqui, no Ocidente, a arte é um prazer; lá, é oxigênio.



Observações: Bem, aqui vai mais uma entrevista do Andrei Tarkóvski. Eu tirei esta entrevista do livro do CEDUC Vídeo 101, um volume específico sobre o Stalker do cineasta em questão. Este livro encontra-se na Biblioteca da PUC/SP. Esta entrevista, originalmente, fora publicada na revista VISÃO de 18/06/1986.

Ao som de Art Davis – Add.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito obrigado !