segunda-feira, 23 de abril de 2007

Imagens Sonoras


Indubitavelmente, a vida de muitos de nós não seria a mesma sem o cinema, por outro lado, o número de pessoas que teriam suas vidas radicalmente transformadas se ampliaria enormemente se colocarmos em questão a música e o impacto que sua ausência causaria, é impossível imaginar o homem sem a música. Posso afirmar, sem temer por um engano ingênuo, que em qualquer sociedade, industrial ou não, com linguagem escrita ou oral, a música ocupa um espaço privilegiado.



Tendo isto em mente, pensei em escrever algo a respeito do encontro de ambas as artes, ou seja, gostaria de discutir a música no cinema. No entanto, não me proponho uma discussão original e personalizada, afinal, meus conhecimentos são escassos e preciso contar com aqueles com mais experiência do que eu, aqueles que já percorreram um caminho mais longo daquele que fiz até agora. Deste modo, faço uma pequena leitura e interpretação das opiniões de Andrey Tarkovsky sobre o uso de sons e da música no cinema.


Datando historicamente, a música tem acompanhado o cinema desde seu nascimento, sempre tendo por objetivo dar à imagem uma ilustração, uma moldura rítmica e intensificar a sua emotividade. Assim, desde seu princípio, alguns cineastas têm-se utilizado da música de uma forma que pode ser definida como caprichosa e automática. Inclusive, em muitos casos, concedendo a arte musical a triste e vulgar função de salvar uma cena que não funciona. E pelo modo como Tarkovsky concebe a arte, ele acredita que tem sido este um dos maiores erros na relação entre música e as obras cinematográficas, o “uso” da música no cinema e não a síntese orgânica desta com a imagem.


Acredito haver na forma como Tarkovsky concebe a ambas uma contradição aparente que pode ser conciliada. Num primeiro momento, ele crê que o mundo transformado pela música entra em conflito com o mundo transfigurado pelo cinema. As duas possuem linguagens próprias e se propõem a experiências sensíveis distintas. No entanto, - e é este o cerne da aparente contradição – ele afirma que a música no cinema é uma parte integral da vida humana. Assim, compreendo que a representação do mundo se tornaria impossível, no caso do cinema, sem a musicalidade intrínseca à vida humana. Ele mesmo coloca em questão suas motivações acerca da não utilização da música no cinema, expõe inclusive a intencionalidade de se fazer um cinema sem música. No entanto, admite ter falhado em suas tentativas de efetivar esta especulação teórica e afirma que o mais perto que chegou desta intenção foi em Stalker e em Notalgia.


Na concepção tarkovskyniana a música no cinema deveria funcionar como um refrão, sempre reafirmando o tema proposto e funcionando em plena harmonia com o mesmo. No máximo, poderia criar novas possibilidades de apreensão da imagem e transfigurar o sentido da mesma emprestando-lhe uma inflexão lírica distorcendo seu sentido - mas não mudando seu significado – ampliando, deste modo, o espectro da sua percepção. A musicalidade fílmica deve conduzir a emoção dando novos matizes ao sentido proposto, ajudando a concretizar o conceito geral da obra cinematográfica. Devendo, sobretudo, ser indissociável da imagem.


Assim, caberia ao artista em questão não permitir que a música fosse usada como um acompanhamento ou uma ilustração, ela não pode ser rebaixada a um mero complemento da imagem cinematográfica, deve ser uma parte orgânica da cena ou do filme. Porém, esta simbiose entre a música e a obra visual, comporta ainda alguns nuances problemáticos, sendo um deles, aquele recurso muito utilizado pelas novelas brasileiras, operar a música como um elemento que reforça o caráter dos personagens centrais do enredo, dando-lhes uma característica que não possuem, uma aura emocional artificial.


Não sendo utilizada como uma linguagem distinta da linguagem cinematográfica, mas intrínseca ao mundo representado pelo cinema, a música ganha seu lugar sem parecer artificial ou incidental.


Ainda, Tarkovsky faz uma divisão entre dois tipos de música; a música instrumental – acredito que ele esteja se referindo a compositores eruditos recorrentemente chamados a desempenharem um papel importante na obra tarkovskyniana, como Bach, Puccini, Purgolesi, Ravel, entre outros. Ele entende que a música instrumental tem uma autonomia que atrapalha bastante a sua dissolução no filme e o uso por parte do cineasta deve se dar de modo concessivo. Acredito que esta concessão parta de ambos, tanto do cineasta que deve obrigatoriamente compreender a autonomia da composição, assim como o compositor, por fornecer uma obra para criar outra obra. Neste sentido, a música invariavelmente ganha um caráter ilustrativo e acredito ser justamente a música instrumental o objeto da intenção de se abandonar o uso da música no cinema por Tarkovsky.


Numa outra concepção encontramos o que ele entende por música eletrônica - e que eu preferiria chamar de música eletroacústica. Inclusive, abrindo um parênteses, há no texto traduzido de Esculpir o Tempo, uma declaração acerca da música eletrônica, onde ele diz que “a música eletrônica deve ser depurada de suas origens ‘químicas’, para que, ao ouvi-la, possamos descobrir nela as notas primordiais do mundo” (Esculpir o Tempo, 1990, p. 195). Realmente meus conhecimentos sobre teoria musical são muito escassos, quase inexistentes, por isso creio que não entendi muito bem o sentido destas “origens químicas” da música eletrônica. Ficaria muito feliz de poder saber, se possível, a sua opinião, leitor deste texto, a respeito do assunto.


Talvez, o sentido deste “químico” diga respeito à idéia de que, diferentemente da música instrumental, a música eletrônica não detém a mesma autonomia, é justamente por suas capacidades de “se dissolver na esfera sonora geral”, podendo “ocultar-se por trás de outros sons” e permanecer “indistinta como a voz da natureza” que lhe impossibilita a uma maior independência.


Neste momento, acho interessante lhes apresentar uma pessoa, talvez, um dos artistas que mais trabalharam com Tarkovsky, foi sem dúvida, o compositor Edward Artemyev, responsável pelas trilhas sonoras dos filmes, Solaris (1972), O Espelho (1974) e Stalker (1979). Acredito que, infelizmente, os dois foram impossibilitados de realizarem mais trabalhos em conjunto em decorrência do exílio de Tarkovsky. Com a intenção de divulgar o trabalho deste artista e o de músicos que foram influenciados pelo mesmo, estou disponibilizando neste blog dois álbuns; uma coletânea que contempla vários compositores que trabalhavam com música eletroacústica na antiga União Soviética, a coletânea abrange o período de 1964 a 1971, Ans Synthetizer (Russian Early Electronics), e apresenta também composições de artistas como Oleg Buloshkin, Sofia Gubaidulina, Edison Denisov, Alfred Schnittke, Alexander Nemtin, Schandor Kallosh e Stanislav Kreitchi, incluindo o próprio Edward Artemyev e um trabalho mais recente de Artemiy Artemyev - Point of Intersection (Electroshock), realizado entre 1996 e 1997, sendo este compositor parente próximo e aluno de Edward e que absorveu muito do estilo de seu tutor. (Para mais informações, consultem o site: http://www.electroshock.ru/eng .


Mas apresentadas estas concepções acerca do uso da música, novas questões surgem e se impõem. Como já dito, houve por parte deste cineasta tentativas de minimizar a importância da música no cinema, embora estas tentativas não fossem um sucesso absoluto, pois não fora possível prescindir da música, elas reafirmaram posições teóricas e estéticas do autor, sendo principal a tese de que quando organizado, o material sonoro captado pelo artista no momento das filmagens ou fora delas, transforma-se, em sua mais pura essência, em música.


Tanto nos filmes de Tarkovsky quanto em suas reflexões - expressas no livro, Esculpir o Tempo e em alguns textos e entrevistas esporádicos – ele discute a questão do uso de sons e a relevância dos mesmos para o cinema. A influência dos trabalhos de Bergman se faz de forma contundente, autor o qual Tarkovsky chega a se referir como “um mestre do som”.


Tarkovsky divide os sons em quatro tipos; naturalmente captados; selecionados, sendo acentuados ou excluídos; sons que não pertencem ao quadro e os distorcidos. Os citados primeiramente, ele considera inviável o uso, os sons naturalmente captados transformam-se em um caos indistinto incapaz de se fundir à cena dissolvendo-a e impossibilitando fixar o sentido da imagem. No entanto, se organizados, estes mesmos sons se transformam em música eletroacústica.

De outro modo, existe sempre a possibilidade de se subtrair em determinadas situações alguns sons que deveriam fazer parte da cena e ressaltar apenas um dos mesmos, como no caso do eco de goteiras que permeiam longos quadros de sua filmografia, tanto de Nostalgia e Stalker quanto em A Infância de Ivan.

Sempre havendo também a possibilidade de se inserir ao quadro, sons que a princípio nada tem haver com a realidade representada, como a cena da libertação da família de Domenico em Nostalgia - uma das cenas mais belas de toda a história do cinema, em minha humilde opinião. Na cena, em preto e branco, a família do personagem é libertada por policiais chamados por vizinhos da família, depois de trancafiada por Domenico durante sete anos, prisão esta motivada pelo medo que ele sentia em relação ao mundo e pela espera de um juízo final. Após a libertação da família, o filho de Domenico sai correndo pelas escadarias de uma Igreja sendo seguido pelo pai, a cena fora desacelerada e o som constante de algo muito parecido com o ruído de um esmeril se faz ouvir. Logo depois de atravessar toda a escadaria, a criança se senta e pergunta ao pai: “É este o fim do mundo?”



Não quero entrar no mérito do significado da cena, tenho a tendência de sociologizar demais o que vejo e por isso prefiro recomendar a vocês que assistam e tirem suas próprias conclusões. Mas o som de um esmeril, que a princípio não possui nenhuma relação com a cena, amplia seu significado contextualizando-a em um mundo altamente complexo e industrial, impregnado por um materialismo doentio e uma religiosidade anacrônica que não consegue organizar um mundo tão caótico e anômico onde indivíduos mal conseguem se comunicar.

Outra das formas de utilização de sons e ruídos é a distorção dos mesmos, transfigurando-os até mesmo ao limite de não mais corresponderem à sua sonoridade original. Um exemplo famoso dentro da obra deste cineasta é a cena do carrilhão em Stalker, quando o próprio Stalker, o Escritor/Poeta e o Cientista/Professor adentram a Zona na busca pela realização de seus desejos. Por vários minutos, o som do atrito das rodas de aço do carrilhão nos trilhos da ferrovia vão ganhando uma proporção gigantesca e parecem ecoar no mais profundo recôndito das almas dos viajantes, o som vai ganhando eco e vai adquirindo uma outra ressonância, partindo de uma sonoridade mecânica dura e vai se transfigurando em um som espiritual mais difuso.


Depois destas breves considerações, que mais estimulam do que resolvem questões, gostaria de dizer que meu objetivo central não fora, de modo algum, apresentar um receita de bolo. Várias outras formas de uso do som e da música devem ser experimentadas na realização de obras audiovisuais e o próprio Tarkovsky considera o cinema uma arte ainda muito jovem e que não desenvolveu nem mesmo uma pequena perta de todas as suas possibilidades. O próprio acredita na possibilidade de fusão entre a música e o ruído, cita inclusive uma passagem de um filme de Bergman; Vergonha, quando este mescla uma bela melodia com o ruído de estática emitido por um rádio. Eu mesmo, em minhas modestas incursões por este tipo de produção tenho a intenção de tentar romper com alguns dos preceitos aqui apresentados, como, por exemplo, tentar reproduzir sons captados de forma naturalista na trilha sonora. No entanto, assim como Tarkovsky pensou ser possível prescindir da música e não conseguiu, poucas expectativas tenho eu, senão, a de um dia poder experimentar também.













Daniel




Aproveitando o teor da discussão, gostaria de apresentar aqui dois trabalhos significativos de compositores russos contemporâneos. Sempre lembrando que a intenção é a de apresentar este material, sem fins lucrativos e com a intenção de divulgar o trabalho dos autores. Em primeiro, um trabalho Artemy Artemiev, herdeiro direto do compositor Edward Artemiev, que trabalhou longo período com Andrei Tarkovsky, já o segundo trata-se de uma coletânea com diversos compositores significativos como Sofia Giubaidulina, Denisov, Schnittke e Kreitchi.






Artemy Artemiev - Points of Intersection




















1. Under Cover of the Skyies. 11:38.

2. Mirage (Dedication to the Swiss artist Felix Bosonnet (1943-1985)). 12:12.

3. Down by the Footsteps Leading to the Abyss. 21:40.

4. Point of Intersection. 18:59.

5. From & To. 10:37.




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Ans Synthetizer (Russian Early Electronics 1964-71



















1. Oleg Buloshkin: "Sacrament". 03:34

2. Sofia Gubaidulina: "Vivente Non-Vivente". 10:44

3-4. Edward Artemiev:
"Mosaic". 04:00
"12 Looks at the World of Sound". 12:52

5. Edison Denisov: "Birds' Singing". 05:05

6. Alfred Schnittke: "Steam". 05:50

7-8. Alexander Nemtin:
"Tears". 04:41
"I. S. Bach: Choral Prelude C-dur". 02:30

9. Schandor Kallosh: "Northern Tale". 05:38

10. Stanislav Kreitchi: "Voices of the West". 02:00

11. Edward Artemiev & Stanislav Kreitchi: "Music from the Motion picture "Cosmos". 12:15

12. Stanislav Kreitchi: "Intermezzo". 02:20



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Ao som de Bonobo - Pick Up.




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