Gostaria de discutir aqui algumas questões acerca da produção cinematográfica em nossos dias, sobretudo no Brasil. Não tenho a pretensão de realizar uma análise audaciosa e inovadora, pois, além da complexidade que lhe é particular, o cinema é uma arte em constante transformação. A passagem dos meios analógicos para o digital tem consumido neurônios de muitos críticos, técnicos e artistas ligados ao cinema e as artes audiovisuais. Porém, embora o assunto que quero discutir seja anterior às estas transformações técnicas ele não deixa de ser pertinente aos novos meios de produção digital, pois, mesmo sendo estes mais baratos, ainda requerem pesados investimentos materiais e profissionais. Deste modo, gostaria de discutir sobre os meios de financiamento, produção e distribuição audiovisual no Brasil, principalmente, no caso do cinema.
Não é um exagero afirmar que o cinema deva ser considerado uma gigantesca indústria, dependente de vários setores de produção diferentes e que conta com uma complexa divisão do trabalho. O cinema é caro e para que se realize, uma série de recursos devem ser direcionados para sua produção. Isso se dá em qualquer lugar do mundo, e mesmo um cinema marginal, independente, financiado com poucos recursos, mesmo este, ainda é restrito a grupos muito seletos - isto por que estou falando apenas da produção, nem entrando no mérito de questões tais como distribuição. Além do mais, os recursos aos quais me refiro não são apenas materiais como, em coro, os cineastas brasileiros gostam de afirmar, nosso cinema não carece apenas de dinheiro, há uma carência de artistas e técnicos competentes e originais. Creio eu que os resultados das bilheterias dos filmes nacionais talvez sejam um ótimo demonstrativo que venham a corroborar muito bem o que estou falando, nosso cinema não esbanja sensibilidade e empatia no que diz respeito à formação e a relação com o público.
Outro aspecto, e este carece sem dúvidas de estudos e reflexões mais aprofundadas, é uma questão levantada em uma discussão entre amigos, o brasileiro realmente gosta de cinema? Qual o nível da relação do brasileiro com esta arte tão industrial? Vamos partir do princípio que exista sim um público para o cinema no Brasil e meu principal argumento para a existência deste público são os próprios dados das bilheterias dos cinemas brasileiros. Embora não tenham uma relação muito forte com o cinema, como os norte-americanos, há sim um público e ele vai ao cinema, e vai, sobretudo, para ver filmes estrangeiros.
Tendo feitos estas considerações, vamos para outros pontos. Uma vez que no Brasil o cinema é carente de pesados investimentos financeiros e humanos, e que esta produção não consegue atingir seu público, temos um problema gravíssimo, afinal de contas esta produção deve ser custeada por alguém, alguém que legitime a produção e a financie, assim, qual tipo de produção deveria ser priorizado?
Há muita discussão acerca da superioridade dos filmes de autores e/ou de arte, de um cinema experimental sobre filmes destinados a um amplo público, ou vice versa. Esta discussão para mim é tola, deve-se entender a inutilidade de afirmações categóricas sobre qual é melhor ou pior. Pois aquele cria, inventa, é dinâmico enquanto este último assimila, reproduz e sintetiza as inovações das vanguardas experimentais tornando-as assimiláveis para o grande público.
Acredito que seja um grande risco para a arte cinematográfica, assim como para qualquer outra, que as diretrizes para financiamento privilegiem uma ou outra tendência ou estilo, pois acredito que estas possam ser solidárias entre si e que possa existir um equilíbrio entres os diversos tipos de produção.
Portanto, pretendo discorrer sobre dois modelos econômicos que conseguiram este equilíbrio, principalmente no que tange à diversificação de sua produção. O que mais me espanta é que os dois sistemas encontram-se em modelos econômicos diametralmente opostos, o do capitalismo norte americano e o de economia planificada do regime socialista soviético.
Dois sistemas de produção – o norte americano e o soviético
As obras destes autores se consolidaram, mesmo muitas tendo sido censuradas e colocadas no index do regime. O surpreendente é que dentre estas obras censuradas há uma pequena parte disso tudo que o ocidente só agora, depois da Perestroika e Glasnost ou devido a contrabando por parte de alguns burocratas corruptos e artistas envolvidos em contrabando de obras de arte, está tendo acesso, como no caso de alguns filmes de Sokurov e Paradjanov[1] - sendo estes dois autores o caso de cineastas que conseguiram uma certa repercussão no ocidente tendo seu reconhecimento limitado apenas pelo desconhecimento do grande público, no entanto, gozando de grande apreço por parte de muitos cineastas e estudiosos das mais variadas áreas. Logo, imaginem quantos outros artistas tiveram seus trabalhos censurados depois de produzidos e que hoje encontram-se no mais completo desconhecimento perdidos em estantes empoeiradas de porões empoeirados, esperando ansiosamente por pesquisadores dispostos a enfrentarem o mofo e a má vontade de burocratas? Imaginem que existam muitos filmes censurados e guardados nos acervos dos institutos e faculdades de cinema na Rússia e que apenas poucas pessoas tiveram acesso por décadas! Imaginem quando este material finalmente for liberado e distribuído? Que patrimônio artístico cultural incalculável deve conter este acervo.
Porém, independente da grande quantidade de obras proibidas, a produção cinematográfica russa oficial é das mais vastas imagináveis, podendo os pesquisadores da área defrontarem-se com materiais dos mais variados continuamente, há muito a ser visto e estudado, digo isso não só na área do cinema ficcional, mas também como em animação e documentários. O centralismo intervencionista soviético soube compreender o significado do cinema e da importância do investimento no mesmo, e mesmo depois de financiar obras que seriam posteriormente censuradas teve a sensibilidade de não destruir o material produzido e guardando-o à posteridade.
Assim, ressalto que não se trata apenas de fazer críticas ao regime soviético, não pretendo aqui delongar sobre os problemas políticos e econômicos inerentes a este regime autoritário e aos custos de seu desenvolvimento em vários campos estéticos e técnicos, a propósito, cineastas com Tarkovsky, Paradjanov e Sokurov faziam este enfrentamento e já antes deles, muitos escritores e poetas foram fuzilados, presos e deixados morrer de fome em campos de trabalhos perdidos entre a neve, como o caso de Isaac Babel e Goumilev. Fiz questão de inserir este parágrafo, pois pode parecer que eu seja um entusiasta do regime e quero deixar bem claro que não se trata disso, o que me impressiona é como a máquina estatal soviética funcionava com energia e eficiência. Para compreendermos a vitalidade desta produção, imagine que na URSS era praticamente impensável a existência de um cinema marginal e/ou independente, o estado soviético abarcava toda a produção audiovisual!
No campo antagonicamente oposto, encontramos o modelo de produção norte americano. Cabe lembrar que não pretendo analisar qual é o melhor, reafirmo, não se trata de discutir ideologias, quero aqui entender como estes sistemas atingiram seus fins, realizando uma vasta e importante produção cinematográfica. O modelo dos EUA se pauta no consumo, e como o cinema é caro, ele deve financiar a si próprio e ainda gerar lucros e, assim sendo, poucos podem afirmar que o modelo norte americano seja um fracasso. Se a indústria norte americana hoje enfrenta uma crise, esta se deve muito mais às radicais transformações técnicas que nossos dias têm presenciado do que necessariamente pela forma como sua indústria se organiza.
Cito estes exemplos com a intencionalidade de dizer que o cinema deixa de ter valor enquanto produto em si e ganha caráter meramente político em um caso, ou publicitário
“Que vulgaridade, que porcaria! Bah, que revoltante! De qualquer forma, creio que seu filme não irá mesmo fazer sucesso. Com toda a certeza, não conseguiu mesmo atingir seu público, e, afinal, é isso o que importa.”... “É de admirar que as pessoas responsáveis pela distribuição dos filmes aqui na União Soviética deixem passar tais disparates”[3]
CINEMA DE VANGUARDA OU EXPERIMENTAL E CINEMA PARA O GRANDE PÚBLICO.
Então, retornamos ao final do subtítulo anterior, se nos restringirmos às vontades e desejos do grande público, o cinema, ou qualquer tipo de arte que requeira médios e grandes investimentos, pode entrar em um complicado estado de estagnação. Imaginem a situação e desculpem-me a brincadeira, imaginem se eu fosse responsável em censurar ou liberar recursos para uma produção de Eisenstein? Conseguem imaginar o crime que eu poderia cometer contra a técnica cinematográfica? Ou imaginem que o engenheiro anteriormente citado por ter escrito uma carta a Tarkovsky tivesse razão e os “disparate” chamado O Espelho não tivesse sequer sido produzido? Ou se, em outro contexto, os filmes, por exemplo, de Peter Greenaway e Buñuel, que não gozam de grande público[4], não tivessem sido produzidos em função do público relativamente pequeno dos mesmos?
O caso brasileiro
[1] Existe algum material audiovisual de Paradjanov na internet (Um dos quais disponibilizo logo abaixo) e tudo indica que o material censurado pelo estado soviético que hoje é encontrado na web sejam trabalhos que tenham sido contrabandeados e vendidos para ricos colecionadores nos EUA e na Europa. Ainda mais, segundo Bóris Schnaiderman, o próprio Paradjanov fora condenado a quinze anos de prisão tendo sido acusado por envolvimento com “negócios fraudulentos” com obras de arte. Para quem tiver interesse; Bóris Schnaiderman, Os Escombros e o Mito, A Cultura e o Fim da União Soviética. Cia. das Letras.1997.
[2] Não quero aqui entrar no mérito desta antiga e clássica discussão, para quem se interessar pelo assunto pode buscar saber mais no livro de Siegfried Kracauer, De Caligari a Hitler. RJ, zahar, 1990.
[3] Andrei Tarkovsky, Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
[4] Quando digo grande público penso em campeões de bilheteria que levam milhões de pessoas ao cinema e não autores que são apreciados apenas em alguns segmentos sociais, como, em minha opinião, são os autores citados.
Segue parte do curta de Paradjanov, Hagop Hovbatanian.
Um comentário:
Queria comentar teu texto. Não respondo a tuas indagações mas penso um pouco com elas e divergindo alguma coisa delas. Vai ficar muito grande por isso escrevi em meu blog de todas as coisas. Se tiver tempo, dê uma olhada:
www.passodotempo.wordpress.com
Abraços
Postar um comentário